Diário de um/a desempregado/a

Introdução

É grande a diferença entre falar de desemprego e estar desempregado. É um abismo lazarento o que existe entre falar de desempregado, e ser um/a deles/as (ver Lc 16, 25-26). Mesmo os que a partir de um piedoso pedestal cristão, assumem um pretenso debate de esquerda, mesmo que disforme e cheio de buracos conceituais, tentam fazer um discurso de solidariedade. O discurso carregado de ideologia é genérico, à moda urbana, e aponta as mais variadas causas, os mais diversos culpados, mas é muitas vezes incapaz de ver os rostos, e de citar nomes e de sentir. Para quem estar desempregado/a chega a dar náuseas, tantas certezas, tanta piedade e tanta cegueira. Mas, tudo isso acontece com as melhores das intenções. E, para o cristianismo de altar, assim como para esquerda de discursos e palanques – mesmo que neguem esta condição -, o que valem são as intenções. É um paradoxo com sabor de incoerência, o discurso de negação da ideologia midiática que diz ser a pouca qualificação que gera o desemprego, mas que na verdade a legitima. Tanto no meio religioso quanto no meio político-partidário, os critérios de empregabilidade passam longe, muito longe da questão da qualificação. Muitas vezes, sobretudo se associarmos a qualificação à formação acadêmica, esta é um empecilho, uma barreira. Assim, os João Ninguém, os José das Couves, as Marias sem nome e as Chiquinha do Lar, se tornam invisíveis. Nem como desempregados são vistos.

Eu sou um dos João Ninguém que já ajudou a arranjar emprego para outros que, como eu agora, estavam desempregados. Algumas vezes, só o fato de chegar numa reunião ou em um grupo e dizer que tal pessoa está desempregada e falar sobre ela, já é uma ajuda e tanto. O que mata mesmo é o silêncio, porque deixa a pessoa desimportante e a faz enxergar a indiferença dos outros e tudo isso contribui para legitimar a própria desimportância. Depois do primeiro mês desempregado, a gente já não consegue mais disfarçar a inquietação. Só os amigos que não veem. Quando chega o primeiro dia 30 sem entrar o salário na conta, você já ver de cara que é a única coisa que mudou. O resto tudo permanece. A conta de água, a conta de luz, a conta do telefone, o gás acaba, a passagem de ônibus parece que dobra de valor. Às cobranças e as exigências permanecem as mesmas. Aí vem mais outro mês e outro e você vai se afastando de tudo o que pertencia. Deixa de ir aos aniversários, às festinhas, ao futebol. Aí você chega a qualquer destes lugares, e haja paciência, porque todos, com muito raríssima exceção, dizem: você está sumido! Nossa, você sumiu! E têm aqueles que se superam: enricou? Ganhou na mega sena? E você ri um riso amarelo, mas que ninguém ver a cor. Como poderiam ver a cor do seu sorriso se nem te veem direito? Aí você começa a fazer uma lista de possibilidades. Eu, esse João Ninguém, cheguei a fazer uma lista com cento e sessenta e seis amigos/as, depois de seis meses desempregados. A certa altura, olhando aquela lista, me dei conta que apenas três daqueles nomes havia me perguntado: e aí, apareceu alguma proposta de trabalho? Um deles disse: como você está, está conseguindo levar as coisas, mesmo desempregado? Eu lhe disse: por enquanto estou tocando, mas já está ficando apertado. É que vocês conseguem viver com o que tua mulher ganha, né? Responder o que? Para um ser destes? Sim, tranquilo!

São poucas as pessoas capazes de entender a importância de um emprego na vida de um/a trabalhador/a. O pior é que a maioria tem certeza que entende. Não é apenas uma questão de salário ou de sobrevivência. O trabalho é determinante na dignidade de uma pessoa. Por vezes ele é, ou representa a própria dignidade. Não vem ao caso se o marido ou se a esposa trabalha, se ganha bem ou não. Aí, quando você tem um carro, como é o meu caso, a coisa piora. Porque, parece que no imaginário das pessoas, enquanto você tem um carro, nada mudou. Aí, lá vêm os amigos. Você oito meses desempregado/a, andando a pé e de bicicleta, se sentido um inseto Kafkiano, e um deles te diz: vamos ver o jogo amanhã? Tem promoção. O ingresso vai custar só R$ 50,00.  Você com vontade de sumir, diz: não, não vai dá! Ele insiste: vamos lá, cara, você não sai mais de casa! Tem que viver a vida! É, eu estou tentando, você responde. Aí, depois você fica sabendo que ele disse que você anda desanimado. Aí chega o outro e oferece uma rifa. Olhe aí, João Ninguém, é para ajudar a construir a Igreja. Custa só R$ 10,00, compra aí umas três para me ajudar e ajudar a Igreja. É constrangedor! Como você não comprou, ele diz: perdeu a fé? Deus te dar o dobro! É melhor não escrever o que a gente pensa.

Você precisa fazer das tripas coração para não perder a autoestima. Lembra-se todos os dias daqueles três amigos que há cinco meses lhe perguntaram sobre a sua situação. Aí se pergunta: será que eu não tenho mesmo qualificação? Será que meus amigos todos são mais inteligentes do que eu? Será que eu fiz alguma coisa errada com meus amigos e não percebi? Meu Deus, acho que não! Aí o padre diz na homilia de Domingo: Deus nos ama igualmente, mas nem todos nós nos esforçamos da mesma forma e lutamos para conquistar o que Deus reservou para nós! Aí você já pensa: é, deve ser isso, a culpa é minha que não me esforço o suficiente. Encaixa em você como uma luva na mão. E ele diz mais: eu, por exemplo, não conheço ninguém preparado, que seja competente, desempregado. Pode ver! Os bons estão todos empregados. Ao teu lado, uma senhora confirma baixinho para o filho: eu não te falei? Não trabalha quem não quer! A gente não sabe se se arrepende de ter ido à missa ou se admite que é incompetente mesmo. O fato é que mais um Domingo foi para o espaço. Quando você vai saindo da Igreja encontra outro amigo que diz: olha vamos lá para a comunidade? Tem almoço lá hoje, uma costela caprichada! É só R$ 30,00 por pessoa. Você só consegue dizer: a é?

Ai, um daqueles teus cento e sessenta e seis amigos te liga. João Ninguém, amanhã teremos uma reunião do partido, às 20:00, e a gente precisa levar o máximo de gente nossa possível, porque a turma do cérebro de ameba vai querer aprovar uma tese deles e a turma da cabeça de camarão vai querer boicotar o congresso do partido. Os dois grupos estão unidos para impugnar a candidatura de nosso candidato à presidência. Você vai de carro, né? Talvez tenhamos que dá várias viagens. É melhor não escrever o que você pensa nessa hora. Então você diz: não, eu não vou, me apareceu uma assessoria, são três encontros e o primeiro será amanhã. Eu agendei a partir das 19:00 até às 22:30. Ele ainda diz: faça uma forcinha para ir, é importante! Aí você se pergunta: para que serve um partido? Até que ponto vale à pena contribuir com isso? É melhor apelar para o Cazuza mesmo: “Meu partido, é um coração partido”.

Aí, quando você pensa que já viveu e já viu tudo de ruim, agora só pode melhorar, um dos teus cento e sessenta e seis amigos te liga. Ele faz a pergunta mais besta e mais repetida no mundo: João Ninguém, está tudo bem? Alguém já respondeu outra coisa, se não, sim está tudo bem? E se alguém respondeu outra coisa, perdeu a amizade. Nossa, que cara mal-educado! Pessimista! Vão dizer. Aí, ele diz: João Ninguém, você me desculpa, mas eu preciso te pedir uma coisa. Sim, diga, se eu puder atende-la, o farei com muita graça. É simples, eu acho que você vai concordar, sabe? Eu queria te pedir para ter mais cuidado nas usas publicações no seu facebook. Você anda postando uns comentários meio incompatíveis com o nosso partido, mas principalmente com o nosso grupo. Às pessoas vão pensar que é o grupo que pensa assim e não é bom para nós isso. Você entende, né? Mais uma vez é melhor não escrever o que o cérebro processou imediatamente. Um desempregado, invisível e, agora, doutrinado. Lembrei-me de minha avó materna que dizia: “Eu morro e não vejo tudo! ”. Não deixa de vir aquela ilusão de que não é tão invisível assim.

Aí, a gente estar em um evento, e alguns daqueles cento e sessenta e seis amigos te arrodeiam e começam a articular. Teremos um feriadão aí vamos para a praia? João Ninguém, você vai com a gente, né? Não, acho que dessa vez, não vai ser possível. Enquanto isso seu cérebro fica processando a mil rotações por minuto. Que diferença faz para um/a desempregado/a ser ou não feriado e se é prolongado ou não? Mas quem estar empregado não entende isso. Aí você precisa mudar os hábitos mais frequentes. Não pode mais comprar pipoca, nem tomar um cafezinho, comprar uma balinha no semáforo. Você evita passar por perto de uma livraria, porque comprar livros sai de suas necessidades e de sua lista de prazeres.

Para um/a desempregado/a o calendário não serve para nada! Os dias perdem a sua identidade. Domingo ou quarta, são a mesma coisa. Aí você encontra uma multidão de empregados, comemorando a sexta feira, e fica se perguntando, por quê? Chega o Domingo à tarde, vem aquele exército de mau humorados, e você também não entende. Aí te dizem: amanhã é segunda feira, tenho que trabalhar cedo! Aí, você nem se esforça, porque não dá para entender mesmo! Pelo menos um desempregado não entende. É tempo de agradecer. É tempo de misericórdia. É tempo de ser profeta e profetiza. É absolutamente necessário ter o ouvido afinado para ouvir o silêncio dos oprimidos, e ter olhos atentos para enxergar o que é invisível para passageiros casuais, desta vida, é essencial o que diz o teólogo Sandro Gallazzi, no seu livro “Envia teu espírito e haverá criação – Reflexões sobre ecologia e Bíblia”, pelo CEBI. “Trata-se de estabelecer um diálogo atento e humilde, na atitude evangelizadora de Paulo que poderíamos assim parafrasear: fazer-nos índios com os índios, caboclos com os caboclos, negros com os negros, ribeirinhos com os ribeirinhos, seringueiros com os seringueiros, fazer-nos tudo em todos e todas” GALLAZZI, 2017, p. 72). Fazer-nos desempregados com os desempregados, homoafeitvos com os homoafeitvos, pobres com os pobres, por fim. Todos os nomes de personagens, aqui utilizados são fictícios.

Curitiba, 31 de outubro de 2017 – terça feira, mas poderia ser qualquer outro dia.
João Ferreira Santiago, desempregado, mas trabalhando muito!
É Teólogo, Poeta e Militante.

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