Ideologia para viver

 IDEOLOGIA PRA VIVER

            É sabido, público e notório que o tempo, o ritmo, dos processos de sistematização de experiências, andam atrasados em relação ao tempo real. O tempo em que elas acontecem. Sobretudo, a acadêmica. É igualmente visível a doentia dicotomização (separação) existente entre teoria e prática. Entre liderança partidária e liderança popular. Entre mandato político e movimento popular. É ainda predominante a relação de dominação, daquele sobre este, de enfrentamento e às vezes até de criminalização.

            É hora de avaliação, e para isso, precisamos primeiro concordar que é importante avaliar. Depois precisamos desenvolver uma metodologia que, vivificante, dialogante e humanizadora, oxigene, sobretudo, as relações nesse processo. Não basta cantar com Cazuza, “ideologia, eu quero uma pra viver”, se na prática, nas ações e opções que fazemos, demonstramos prescindir dela. Que concepção metodológica alimenta nosso que fazer, se avaliamos um mandado como bom, quando ele é re-eleito? Muitas vezes às custas de prostituir os processos e as relações entre nós? Da cooptação de lideranças – messiânicas ou não – e do iníquo uso do poder econômico? Mesmo sabendo que os recursos – de mandatos ou de secretarias e ministérios – são sempre públicos. E ainda temos “coragem” de dizer que isso não é compra de voto.

            Mais que sabermos o que não queremos, precisamos falar mais sobre o que queremos. Que tipo de sociedade desejamos e sonhamos construir? O tipo que não queremos a gente, grosso modo, já sabe. Nós não queremos uma sociedade pedófila e que “naturaliza” ou fecha os olhos para essa aberração; nós não queremos uma sociedade homofóbica, que discrimina, desumaniza e mata, física e ou psicologicamente, as pessoas por suas opções sexuais; nós não queremos uma sociedade imoral a ponto de “resolver” os seus problemas de injustiça e violência, verdadeiro extermínio da juventude, reduzindo a maioridade penal; nós não queremos uma sociedade criminosa a ponto de separar as pessoas pela brancura de sua pele. Quanto mais branca, melhor o salário. Quanto mais branca, mais direitos; nós não queremos uma sociedade bestial. Na forma de viver a cultura, a religião, a política, a economia, o desenvolvimento. Isto é certo. 

            A lista é infinda! Registrei essas reflexões, entre outras, ouvindo, nas oficinas de educação popular, encontros microrregionais e, principalmente nos encontros estaduais da Rede de Educação Cidadã – RECID – Brasil a fora. Estive em Pedro II, no Piauí e ouvi de Irmã Celina, profetiza e coordenadora da fundação Santa Ângela: “me dói profundamente o coração, saber, que mesmo com este trabalho, no decorrer de tantos anos, quando chega o período eleitoral, vêm outros jovens, a serviço de candidaturas criminosas e compram voto dos jovens que estão aqui. Compram oferecendo um emprego temporário, para eles ou para alguém da família, uma ‘vantagem’ qualquer, ou até dinheiro mesmo”. Irmã Celina é uma militante do reino, de 79 anos, é líder de mais de uma centena de jovens, inclusive vindos do Ceará e têm lá educação de qualidade. Estudam e trabalham aprendem, numa educação contextualizada, valores para a vida. Uma ideologia pra viver. Construir coletivamente os processos de vida, conhecer a terra e dela cuidar como quem a ela pertence.

            Muitas outras vozes como estas ouvi, no Paraná, no Tocantins, no Ceará, no Maranhão e outros lugares. É hora de virarmos a mesa. De virarmos a página e gritarmos. Chega! É hora de ouvir. O ano que vem teremos uma eleição decisiva para o Brasil. Elegeremos deputados, estaduais e federais; governadores; senadores e o ou a futuro (a) presidente do Brasil. Precisamos responder às perguntas que já fizemos e elaborar outras tantas. Do tipo: o que fez, como fez e para quem fez alguma coisa o parlamentar em quem nós votamos três anos a trás? Você conhece algum deputado, principalmente estadual, que, minimamente, mesmo forçando um pouquinho à barra, possamos dizer: este fala a nossa linguagem. Este não se sente “dono”, mas pertencente. Pertence ao nosso sonho e sonha conosco. Utopia? Talvez, mas eu acredito cada vez mais nela. Ainda: Seus assessores são assessores conosco ou são intermediários, interventores e penetras marqueteiros? Esta é uma reflexão para este ano, porque ano que vem todos virão. Sorriso aberto, muito falantes, atenciosos e cheios de “boas intenções”. Com quais critérios separaremos alguns grãos de trigo do meio de uma ruma de joio? Não basta concordarmos com Cazuza que “o tempo não para” se paramos no tempo. 

            A história insiste em nos mostrar que não bastam boas intenções. Obama que o diga. O Presidente é negro, mas a casa continua branca. A América Latina, vivendo talvez seu mais extraordinário e democrático momento histórico, também nos diz: não é suficiente a prepotência, a arrogância faz mal. E, principalmente, sozinhos, isolados o sonho de Che, José Martí, Bolívar, o nosso sonho, é impossível. O momento de ascensão social que vive o Brasil, o processo de organização no qual está inserido o povo brasileiro, a partir das classes sociais de baixo que vivem essa ascensão, nos trás novas exigências. A principal delas me parece cada vez mais, ser de líderes a altura deste momento e dessas exigências. Sobretudo, a missão de tirar do papel o que lá colocamos em 1988, exige líderes esperançosos, comprometidos com este sonho e entidades e movimentos menos denominacionalistas e mais comungantes.

            Se não, ainda veremos por muito tempo, como tenho visto pessoas indignadas ou satirizando os vereadores que só mudam os nomes das ruas, que empregam os parentes, que propõem o dia da hipocrisia, se autohomenageando, como ouvi de alguém. Veremos por mais algum tempo, senadores hipócritas, mesmo sem o dia da hipocrisia – não precisa – propondo mudar o fuso horário do Brasil, unificando-o, para resolver as desigualdades. Para que o Norte possa se desenvolver, alega o parlamentar. Continuaremos com essas práticas que são tentativas de prostituir a vida e seus processos. São verdadeiros insultos à inteligência do povo brasileiro e humana. Assim, neste dialético e contraditório processo, precisamos encontrar saídas. Como enfrentaremos as “travessuras” dos velhinhos do senado e do judiciário, que mais parecem querer materializar a poesia cortante de Cazuza: “transformam o país inteiro num puteiro, porque assim se ganha mais dinheiro”. Precisamos ser perseverantes e continuar, lutando e creditando. No Brasil e em seu povo, hoje, guiado pelo presidente Lula que soube a sabe, profeticamente ler Cazuza. Agora aqui vou parafraseá-lo: “dando um pouquinho de atenção, a esses milhões de abandonados!”. O presidente Lula é um democrata convicto e sabe o povo e o país que tem. Os conhece e os ama sem pudor.

            O processo eleitoral é uma forma coletiva de sistematizar as experiências. É significativo observarmos que, apesar da lei popular anticorrupção eleitoral, (Lei 9840/99) apesar da compra de voto ser quase generalizada, sobretudo nas últimas eleições, pouco fazemos. As denuncias contra esta prática criminosa, ainda são feitas geralmente por antigos aliados. Insatisfeitos com as “vantagens” prometidas ou mudando de poleiro político.

Brasília, 23 de Junho de 2009.

João Santiago – Poeta e Militante
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