"Mas livra-nos mal" (Mateus 6, 13)

Mas livra-nos mal, ou do maligno, isto é, de satanás – Mateus 6, 13 [1]

O ladrão, o mentiroso, o invejoso são figuras presentes nas culturas bíblica, eclesial e popular. Sempre relacionados com tropeço, com a queda e com o mal. Na Bíblia é fácil encontrá-las contrapondo-se à  Justiça, à Verdade, à felicidade; na Igreja ou nas Igrejas, são figuras indesejadas e de quem somos orientados a nos mantermos distantes; já nas culturas populares, sobretudo familiares, os pais e as mães que constroem vínculos de pertencimento com seus filhos, não os querem com amigos assim. A Sabedoria, por outro lado, se expressa plenamente no temor de Deus, diz-nos a Literatura Sapiencial (Pr 9,10). O dragão invade, ameaça e constrange a mãe grávida, diz-nos a Literatura apocalíptica (Ap 12.1-7), mas vamos meditar sobre o capítulo 12 inteiro? Dom Orlando Brandes, Arcebispo de Aparecida, usou a imagem do dragão para se comunicar com a comunidade humana no Brasil, frente à invasão, a agressão e às diversas formas de ofensas daquele que ocupa indignamente a cadeira de presidente do Brasil. Sim, aqui não se trata de ser católico, ou evangélico, ou membro de qualquer outra religião. Trata-se de ser capaz de entender o que está em jogo: a dignidade, o respeito, o caráter em última instância, as liberdades individual e coletiva. Minha total solidariedade a Dom Orlando Brandes e meu mais veemente repúdio à falta de respeito e à canalhice praticados pelo bando que invadiu o Santuário de Nossa Senhora Aparecida e profanou a fé cristã.

Quem invade um templo, ou uma residência, ou qualquer organização humana como o fez o indigno ocupante da cadeira de presidente e candidato à reeleição e seus fanáticos, é capaz de qualquer coisa. Não apenas de roubar, mentir, e ter inveja, como o inominável parece ter de seu concorrente. Afinal, invadir um templo religioso e fazer ao vivo um “espetáculo” deprimente de bebedeiras, de ofensas aos/as profissionais da imprensa da casa, vaiar a homilia do líder religioso e Arcebispo do Santuário, e ainda dizer no dia seguinte que o bispo é arrogante, é para iniciados na “arte” de cometer crimes. Não podemos deixar isentas as pessoas “cristãs?” que votam, pedem o voto e defendem crimes e criminosos assim. Isso fala mais sobre vocês mesmas do que sobre essa besta, para retornar à linguagem apocalíptica. Como não lembrar do poeta? “Transformam o país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”. Talvez, assim, eles possam continuar comprando imóveis com dinheiro vivo. Mentir, roubar e matar são crimes que se completam e se manifestam nesta lamentável exibição de horrores típica de milícias fanáticas que não têm compromisso com a vida, tampouco com a sua verdade.

Jesus de Nazaré ao nos ensinar a rezar quis dizer: “não nos deixes cair em tentação”, de naturalizar o mal e ignorar o bem, “mas livra-nos do mal”, que nos fere, nos faz sofrer e nos destrói. As religiões são feitas de símbolos, ritos, mitos e ritmos, que juntos fazem a liturgia e expressam a espiritualidade. O genocida – reconhecido assim pelo inteiro - que ocupa indignamente a cadeira de presidente do Brasil é mal-educado, mal-humorado, mal resolvido e maldito em sua verborreia e não respeita nem mesmo a liturgia do cargo que exerce indignamente. Por muito menos, mas muito menos mesmo, aliás, neste caso sem nenhum motivo concreto, a câmara de vereadores de Curitiba perseguiu, expôs e violentou um vereador pobre e negro do Partido dos Trabalhadores. O que aproxima os dois fatos é a intolerância, o preconceito, a arrogância e a incapacidade de conviver com o diferente. Aqui em Curitiba, claramente vê-se um caso de racismo estrutural. No Santuário de Aparecida, naquela que é, talvez, a mais expressiva manifestação religiosa do país, o crime principal foi de intolerância religiosa. Mas também de abuso de poder e desespero de um aloprado que sabendo o que fez no verão passado teme pelo que fará na próxima primavera. Já que são vários os crimes cometidos. Imaginemos hipoteticamente, porque ele jamais faria tamanha violência, que o ex-presidente Lula fizesse uma barbaridade assim? Não, eu sei que isso é inimaginável!

Sabem o que mais me assusta? Ninguém do grupo invasor, nenhum dos agressores teve a decência de se retratar, seja com o Arcebispo Dom Orlando Brandes, seja com o Santuário, com os fiéis que também foram violentados, ou com a Igreja católica. Embora esse tipo de crime hediondo, fira não apenas os católicos ou os cristãos. Crimes com essa dimensão ferem qualquer pessoa humana que se mantenha capaz de sentir compaixão. Isso é demoníaco e constitui um novo estágio do governo do demônio que nos atormenta há quase quatro anos. É significativo o que nos diz o biblista Ildo Bohn Gass, em sua belíssima pesquisa sobre satanás e os demônios. “Em Israel, a demonização teve um novo impulso com a opressão dos gregos a partir de 332 a. C., período do evento da apocalíptica entre os judeus”. (BOHN GASS, 2013, p.28). No Brasil, a demonização teve seu impulso com o golpe e com a ditadura militar e agora com ocupação indigna da cadeira de presidente por um defensor da ditadura e da tortura e da pena de morte. Mas é importante que falemos sobre outra figura maligna que atravessa a história da humanidade e se manifesta no vandalismo presidencial no santuário de Aparecida: o diabo, que, pelas palavras do biblista Ildo Bohn Gass, se aproxima muito dos comportamentos malignos do inominável, mentiroso costumaz, que invade Santuários e promove Fake News, como método de campanha e modelo de governo. Vejamos:

Diabo (grego: diábolos) o que joga através, atravessa o caminho, separa, divide, faz tropeçar e cair (Mt 4,1.5.8.11//Lc 4,2.3.5.13; Mt 13,39;25,41; Lc 8,12). É o contrário de símbolo (o que une). Aparece 37 vezes no Segundo Testamento. A seu serviço estão os anjos caídos (Mt 25,41; Ap12,9) e os demônios ou espíritos impuros (Mc 3,22-27; Ef 2,2). Tem poder sobre reinos e reis (Lc 4,6). É o poder das trevas, o oposto da luz (Lc 22,53; At 26,18/satanás). É o tentador (Mt 4,3; 1Ts 3,5). (BOHN GASS, 2013, p. 33/34).

É o contrário de símbolo, porque o que eles tentam destruir são os símbolos da fé cristã. Vejamos alguns aspectos: o tema era tão recorrente naquele período de opressão e repressão, que se faz presente nos três Evangelhos Sinóticos. A descrição dos comportamentos do sedutor, do ser das trevas, assim como de seus seduzidos, denominados de “anjos caídos”, não está longe dos comportamentos que vemos hoje no admirador e seguidor do mais violento torturador da ditadura militar que assassinou fria e covardemente milhares de pessoas que, simplesmente pensavam diferente delas. Coisa que o demônio que nos atormenta há quase quatro anos e seus fanáticos, também não suportam. Também me incomoda e eu preciso dizer, porque no meu entendimento isso descaracteriza o cristianismo naquilo que ele tem de essencial, a solidariedade, o sentir a dor do outro como sendo em nós: o silêncio da maioria esmagadora das lideranças e autoridades cristãs, e, sobretudo, nas lideranças e nas autoridades católicas. Por isso, registro aqui a ousadia de Dom Mauro Morelli. “Bolsonaro se comportou como satanás (...) com seus endiabrados seguidores deveriam ser presos em flagrante como arruaceiros. São Miguel, cuidado”. Tenho a impressão que os bispos quando se aposentam, depois que se tornam bispos eméritos, expressam melhor o profetismo que o cristianismo exige. Assumem o cristianismo com mais ousadia, não sei por quê?

Para não concluir

O que vemos nesse vandalismo típico de milícias fanáticas, é o encontro, o infeliz encontro do poder do diabo com o diabo poder. Recorro aqui à genialidade e à inteligência amorosa de Zygmunt Bauman em seu livro Cegueira Moral. “Resulta que uma “pessoa sadia e normal”, pode se transformar durante um tempo em um idiota moral ou um sádico sociopata capaz de matar lentamente outro ser humano, ou em alguém que não demonstra solidariedade diante da dor de um ser humano torturado”. (BAUMAN, 2014, p. 49). O que mais explica ou “justifica” uma “pessoa sadia e normal” defender e apoiar tamanha maldição para seu país e para seus filhos? Talvez seja o que o próprio Bauman diz, “Sob a tirania do momento, porém, instala-se a “fadiga da compaixão” esperando que um novo um novo choque venha rompê-la, mais uma vez por um momento fugaz”. (BAUMAN, 2014, p. 55). Ao falar sobre o “humor” manifestado pelo ódio, Bauman parece conhecer o demônio que nos atormenta há quase quatro nãos. “O novo humor político trata mais do ódio disfarçado que de piadas riso, e o ódio revela ter como objeto a grosseria política atual. Esses aspectos são facilmente conversíveis e intercambiáveis. O ódio torna-se uma valiosa mercadoria política”. (BAUMAN, 2014, p. 89). Mas nós estamos na primavera e por mais que a humanidade tenha permitido a existência e até produzido imbecis incapazes de amar, como a besta demoníaca que nos atormenta há quase quatro anos, jamais existiu uma capaz de deter a primavera.

Curitiba, 13 de outubro de 2022 – uma quinta feira chuvosa de primavera.

 


[1] João Ferreira Santiago. É professor conteudista e coordenador do Curso de Teologia na Faculdade Unina. É doutorando em Teologia pela PUC-PR. É Teólogo, Poeta e Militante.