Em nome dos pais, das mães, mas sobretudo, em nome dos filhos, amém!
Já visitei casas de repouso para idosos e idosas por diversas vezes e sempre saio de lá com velhas e novas perguntas e lições. A mais velha pergunta: por que alguém coloca o pai ou a mãe em uma casa de repouso? Embora esta pergunta permaneça, ela já tem várias respostas. A primeira lição e que me despertou várias perguntas é a reação das idosas. Todas perguntam o meu nome e sempre tem uma que ao ouvir a minha resposta, ao olhar para mim, com aquele olhar indescritível, cheio de um vazio que ela não quer deixar que seja visto, diz: você se parece muito com meu filho! Embora eu tenha dito para mim mesmo que não faria mais as mesmas perguntas, sempre as faço. Como é o nome do seu filho? Esta parece ser para elas a melhor pergunta. Quantos anos ele tem? Geralmente tem quase a minha idade. Onde ele mora? Às vezes são Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis ou Fortaleza. Uma vez uma mãe me disse, meu filho é médico e mora em Londres. Certa vez uma senhorinha me disse; meu filho está preso em Catanduva há mais de dez anos. Mas ele é inocente, acrescentou. Teve uma vez que um senhorzinho falou: meu filho mora aqui mesmo em Curitiba. Uma pergunta que eu já não a faço mais: faz tempo que ele veio aqui? Desde que este senhor me respondeu: faz cinco anos que não vejo ele. Mas ele tá certo. Eu fui muito ruim pra ele. Pensei por muitos anos: como ele tá certo? Ainda penso assim hoje, embora tenha encontrado novos ângulos de observar a mesma cena.
Acontece que nem todo pai é companheiro e amoroso como o meu pai, ou como o Pai Misericordioso do filho pródigo (Lc 15,11-32). Há pais ausentes, despreparados, irresponsáveis, brutos, cruéis e até pais assassinos. Quase todos viciados em alguma droga, ou dependentes de alguma substância tóxica – lícita ou ilícita - ou de algum hábito compulsivo que o desumaniza. Contudo, o que mais marca e fere a alma e a memória dos/as filhos/as são as violências cometidas pelo pai contra a mãe. Mesmo assim, permaneço dizendo: pai é pai. Mas, conversando e, sobretudo ouvindo os argumentos de alguns filhos, sobretudo, conhecendo realidades e situações que eu desconhecia, entendo os direitos dos país/mães, especialmente pelo fato de serem – ou se tornarem - idosos, mas aprendi a olhar para as situações a partir do lugar de fala dos/das filhos/as que foram violentados por seus genitores. Costumo dizer que frequentemente vemos genitores/as que jamais foram pais/mães ou assumiram a pa(ma)ternidade. As razões são muitas e diversas e todas têm o seu lugar. Até justificam, mas longe de resolver o problema.
A maternidade é muito mais assumida e responsável que a paternidade. Tanto assim que, a expressão “mãe solteira”, embora ultrapassada, é, digamos, “familiar” em nossa cultura. Entre tantas outras possíveis explicações ou causas, estão o machismo, o patriarcalismo desvirtuado, o patrimonialismo como consequência do patriarcalismo misógino e homofóbico. É certo que, embora ainda seja raro, veja-se vez ou outra, e cada vez mais, um pai com uma criança no colo, levando-a para a creche ou para a escola, até nos interiores dos ônibus urbanos. De qualquer forma, poderíamos dizer, mesmo que com certa tristeza, isso ainda é “coisa de mulher”. A expressão que ganha lugar em nossa cultura é “paternidade responsável”, como forma de denúncia de seu oposto, este ainda muito frequente, inclusive na literatura jurídica.
Quando vamos um pouco mais a fundo nas causas que envolvem as relações entre pais e filhos, frequentemente encontramos a dependência química como fator preponderante. Frequentemente o alcoolismo. Essa droga lícita, presença obrigatória, às vezes como convidada de honra nos eventos sociais, familiares e religiosos. Diga-se a tempo, que mais que o álcool, o alcoolismo como uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, é ao mesmo tempo, fator de uma verdadeira tragédia social. Tragédia silenciosa, que só faz barulho e ferida nas almas dos filhos e da mulher-esposa-mãe.
O alcoolismo é a frequente causa de muitas das violências domésticas. Porém, antes, vê-se a ausência paterna no dia a dia dos filhos. O primeiro crime que o álcool comete é contra e relação do pai alcoólatra com seus filhos. Haja vista que o alcoolismo ainda é uma doença predominantemente masculina. O alcoólatra adoece o ambiente familiar, adoecendo toda a família. Até se chegar ao momento de, por exemplo, ele ter que sair de casa, o que ainda é raro, deixa um rastro de destruição emocional e relacional na família que poucas pessoas ainda conhecem. O viciado que sai de casa tem frequentemente dois destinos: a rua, tornando-se pessoa em situação de rua; ou a casas de seus pais, geralmente já velhinhos ou em estado avançado de envelhecimento. Lá, essa tragédia é ainda maior! O alcoólatra, o dependente, o viciado, ou o adicto, o doente, por fim, tornou-se uma pessoa dissimulada, desleixada, insensível, chantagista, mentirosa, manipuladora e desavergonhada. Aqueles que algum dia já a tiveram, perderam completamente a cultura familiar: horários; vocabulário; rotina; respeito; sensibilidade; higiene; hábitos familiares; espiritualidade, essas coisas que todo mundo precisa, principalmente idosos. Em uma palavra: PAZ. Casa que abriga uma pessoa viciada que não adquiriu consciência de seu estado, ou que não está num processo de conscientização, que ainda se acha “o cara”, não tem lugar para a PAZ.
Os sentimentos envolvendo a cônjuge e a prole, por exemplo, são impressionantemente fortes. Vão de deixar falta até deixar alívio. “Aqui em casa a gente não tem sossego, se o pai não chega, a gente fica pensando onde ele estará? Como chegará? O que vai aprontar hoje? E quando ele chega, não tem mais condições de viver. A gente não consegue estudar, não consegue assistir à TV, não consegue nem conversar. Ele grita! Ele xinga/ofende a minha mãe. Agora já xinga/ofende os filhos também. Não lava uma xícara, não faz nada. Têm dias que nem banho toma. O melhor cenário ainda é quando ele não está em casa”, diz uma adolescente. A primeira e mais frequente atitude da família, é blindar o dependente. Por vergonha, por medo ou por co-dependência, como dizem os psicólogos. Os psicólogos, aliás, têm um nome “bonito” para esse doente, que já é bem mais suave que os tratamentos populares e comuns até há pouco tempo: “cachaceiro”, “bebum”, “viciado”, “pinguço”, “nóia”, enfim, são muitos. A psicologia, portanto, os chama adictos. “A gente morre de vergonha, por exemplo, quando ele chega em casa e os vizinhos veem; quando ele chega em casa e tem alguém nos visitando; quando ele chega e traz algum ‘amigo’, então?”, disse-me um adolescente. “Eu não trago o meu namorado aqui de jeito nenhum!”, disse uma mocinha de olhar entristecido.
Quando esses filhos se tornam pais e quando seus pais se tornam idosos, considerando-se as implicações que a vida traz e as consequências que o tempo provoca, é que precisamos entender toda essa relação não vivida. Primeiro que os filhos têm suas próprias vidas; segundo que frequentemente têm traumas ou incômodos, frutos da falta de referência ou da má referência paterna; terceiro que não raro, busca-se suprir nos filhos a atenção que não teve, às vezes superprotegendo-os; em quarto lugar, vejam, nós temos uma mudança radical no jeito de se viver em família, nestes últimos cinquenta anos. Principalmente na planta das residências. As casas de nossos/as filhos/as não têm espaço para nós, seus pais e mães, idosos e idosas. Se formos um pouco mais radicais, como a situação exige, a vida deles/delas, partindo-se, sobretudo do mundo do trabalho, não tem espaço para nós. Por isso, retomando os nossos dois primeiros parágrafos, as casas de repouso serão o futuro para a maioria dos idosos do próximo meio século. Com a destruição do sistema de seguridade social, inclusive e sobretudo os direitos trabalhistas, com as “reformas” neoliberais conduzidas pela direita e extrema direita, quase ninguém da geração de nossos/as filhos/as terá aposentadoria. Sendo assim, projeta-se um cenário desastroso para a velhice da geração que nos sucederá.
É hora de propor políticas públicas que ofereçam casas de repouso para idosos como serviço público. Hoje e daqui em diante, essa será uma necessidade e deverá ser uma obrigação constitucional da mesma forma que hoje é com a creche para crianças, por exemplo. Embora a irresponsabilidade seja uma realidade e os gestores públicos não garantam esse direito a todas as crianças e às suas mães. Se os filhos vão conseguir pagar uma casa de repouso para seus pais, ou se irão visitá-los nelas, não sabemos. Se os filhos que foram maltratados na infância por seus pais adictos, terão a resiliência suficiente para cuidar da velhice deles, também não sabemos. Certo é, no entanto, que não apenas continuaremos tendo idosos e idosas, mas que, inclusive as pessoas viverão em média dez anos a mais. Já ouvi de filhos que não foram ou não se sentiram amados o suficiente por seus pais, “Não vou abandoná-lo, mas não me peça para amá-lo e ir vê-lo ou ficar com ele”. Além do mais, as casas de repouso particulares custam muito acima do rendimento de mais dois terços da classe trabalhadora brasileira.
Curitiba, 31 de maio de 2024
João Ferreira Santiago.
Teólogo, Poeta e Militante.
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