A conjuntura política nacional e as tarefas das Pastorais Sociais
27/8/2010
“O tempo é de partir. Um tempo de homens partidos, como diria Drummond, e que exige rigorosamente um êxodo. Partir interiormente/existencialmente colocando novas perguntas à realidade que se apresenta e experimentar a falta de chão, a inquietação da dúvida, colocar em jogo a rotina, as frases prontas, os chavões e deixar-se invadir pelo novo, pelo inesperado”, escreve Arnaldo Valentim Silva. Arnaldo Valentim Silva é educador social, professor de Filosofia da Rede Estadual de São Paulo. É mestre em Filosofia Social pela PUC de Campinas, com a dissertação “Epistemologia e ética. A crítica popperiana ao utilitarismo clássico”. Eis o artigo.
· Não há nada mais inútil do que fazer as coisas do mesmo jeito esperando resultados diferentes. (Albert Einstein).
· Na caridade de Cristo que nos impele (Paulo de Tarso).
Após oito anos de Governo Lula aproxima-se o período de eleições para governadores, deputados, senadores e Presidente da República. Muitas águas, cabeças e princípios rolaram nestes anos. Comemoramos avanços importantes na educação (ampliação das escolas técnicas e universidades federais, Prouni), na retomada em muitos setores do papel pró-ativo do Estado, seja no planejamento de políticas sociais, seja na recomposição do quadro de servidores públicos, seja ainda nos programas sociais com seus limites e contradições e no tratamento civilizado dos movimentos sociais organizados, etc.
Lamentamos, porém, questões estruturais não resolvidas como a implementação da reforma agrária, a reforma política tão necessária e abandonada, a reforma tributária sempre prometida e adiada, a não implementação de um padrão ético no trato com a coisa pública e a adesão aos vícios e costumes nefastos da política nacional. Sobretudo, lamentamos a corrupção, o projeto de transposição do Rio São Francisco, assim como lamentamos agora a construção da Usina de Belo Monte, um megaprojeto bem ao gosto das empreiteiras, com sérios questionamentos ambientais e que, sobretudo, deixará na rua da amargura centenas de famílias indígenas.
Foram oito anos de luzes e sombras. Evidente que Lula, sob todos os aspectos, entregará um país bem melhor do que aquele que herdou de seu antecessor. Contudo, há que se perguntar sobre as bandeiras republicanas abandonadas, sobre as mudanças estruturais prometidas e não cumpridas. E, acima de tudo, perguntar sobre a destruição política e ética do PT e o surgimento do lulismo, uma prática política nefasta porque personalista e anti-republicana, mas que encontra eco no mais profundo de nossa alma.
Neste ponto, é verdade que Lula é mesmo o filho do Brasil: o país da esperteza, da conciliação por cima, da malandragem, do jeitinho, da Casa Grande e da Senzala reconciliadas no carnaval. Mais do que a Getúlio, esse Lula, gênio da política nacional, que foi capaz de ampliar programas sociais dando acesso a comida e universidade a setores tradicionalmente excluídos de nosso país, nos remete a Macunaíma, o arquétipo da grande Roma banhada em sangue negro e indígena, que somos nós.
Independente de quem vença as eleições de outubro (evidente que há diferenças significativas no tocante a estilo, objetivos, princípios e sensibilidades entre Serra e Dilma, entre PT e PSDB, contudo, no horizonte desta análise esta questão é irrelevante), um balanço sério dos oito anos de governo Lula no que diz respeito a seu significado e legado cultural e político, é possível elencar uma série de desafios e novas agendas e oportunidades a serem enfrentados no futuro pelas pastorais sociais da Igreja sob o risco de, ao não se deter sobre eles, perder o sentido do novo que se apresenta.
Neste curto espaço vou elencar alguns desses desafios que considero os mais urgentes.
1. A superação de certo milenarismo e o desafio do pluralismo político e ideológico. Até 2003 achávamos que ao tomar nas mãos o poder de Estado o PT e Lula iriam dar início a um processo de transformação social nunca visto na história do país. Aprendemos de um lado o quão complexos são os caminhos para a transformação desejada e o quanto, nesse caminho, as lideranças políticas podem se render à ordem estabelecida, aceitando princípios que antes repudiavam. De outro, o quanto é limitada a margem de autonomia dos governos nacionais no sentido de promover políticas econômicas de fato emancipatórias.
Deveremos assimilar igualmente o aprendizado de que não se pode delegar a um grupo de pessoas, partidos ou lideranças políticas o conjunto de mudanças que exigem permanente mobilização social e que provavelmente no século XXI não terão mais que ver com a simples tomada do aparelho de Estado ou com lutas no interior de partidos e parlamentos.
Fica também o desafio de, diante do surgimento de outras forças políticas no campo progressista, possibilitado pelo desencanto político com o PT, aprendermos a não fazer mais alinhamentos políticos automáticos e aprender a conviver com o diferente, porque acima de tudo sabemos agora que a transformação social pode em princípio ser realizada por múltiplos caminhos.
2. A compreensão da importância, mas também dos limites da política partidária. Tarefa árdua essa de – de certo modo psicanaliticamente – “matar o petismo como ideologia dentro de cada um de nós.”E nesse caminho compreender nas sociedades complexas modernas o real valor da política partidária. A política partidária é importante, mas não deve ser aquilo que nos unifica na Igreja. O que nos unifica no seio da Igreja deverá ser sempre mais os valores da transformação social embasados nos princípios cristãos da solidariedade, da equidade, da justiça e da compaixão. Sobretudo, nos unificaremos pela luta em favor dos pobres e deserdados da terra e pela nossa capacidade em ligar o nosso destino ao deles.
A política partidária, as disputas parlamentares, tem importância, mas, contudo, tem limites no mundo globalizado. Daí a importância de apostar todas as fichas, energias e tempo na organização autônoma dos cidadãos, fora do Estado e contra o Estado, na perspectiva de se criar uma democracia fundada na prioridade do bem comum, da felicidade, da justiça como equidade e dos interesses coletivos. Ao se desfocar de partidos políticos terá a pastoral social olhos e tempo para prestar atenção ao que acontece na sociedade civil, ao caleidoscópio do novo, dos inéditos viáveis – para usar uma expressão de Paulo Freire – e irreverentes que emergem a cada dia e em cada esquina.
3. O desafio de diante do pluralismo e da diversidade de tarefas e urgências não perder o essencial. Como pastoral social da Igreja e a partir de nosso engajamento, acumulamos durante esses últimos quarenta anos muitas respostas que faziam sentido. Acontece que felizmente mudaram as perguntas e nossas respostas – que não estão erradas – precisam ser enquadradas/re-significadas em novas perguntas. Uma pergunta importante é responder novamente em meio à diversidade e à adversidade qual o serviço mesmo a que somos chamados na Igreja hoje. Creio que não se trata mais como foi tão importante no passado de entre outras tarefas simplesmente formar lideranças para os partidos políticos e sindicatos. Nem se trata mais de sermos correia de transmissão dos mesmos. E isso deve servir igualmente para as Cebs.
Nosso compromisso deve ser à luz da Palavra de Deus nos manter engajados e comprometidos na luta pela justiça e pela dignidade do trabalho humano em todas as suas formas, contribuindo assim para a transformação social e eclesial. Fundamentalmente, temos a tarefa profética de lembrarmos sempre à Igreja que o trabalho é mesmo chave de toda a questão social e que não poderá emergir um mundo novo se não forem justas e dignas as relações entre capital e trabalho. Quanto mais radical em seu compromisso evangélico com os trabalhadores (as) e os pobres da terra, mais diferente, cultural e religiosamente, a pastoral social será, sem, contudo, encerrar-se em um gueto.
4. Na luta pela justiça e por uma sociedade onde os pobres tenham voz, vez e lugar, recuperar a gratuidade. Muitos de nós, ao ingressar na luta partidária e sindical, acabamos contaminados pelo imediatismo, pragmatismo e, sobretudo, utilitarismo político próprio desses espaços. Sim, porque sabemos hoje sobre a necessária articulação entre fé e política. Mas sabemos igualmente sobre a diversa racionalidade que rege a ambos e sobre os perigos da instrumentalização da fé. Sem temer o perigo – atitude dos que arriscam – faz-se necessário resgatar o lúdico, a graça, a utopia, o inacabado, e o “perder tempo com o outro”. Afinal, na perspectiva da fé, tudo é graça.
Isso se faz mais necessário hoje tendo em vista um cenário político no qual no interior dos partidos de esquerda (a direita já fazia e faz isto muito antes e com bastante habilidade) pontificam os mandatos parlamentares que não raro aparelham bandeiras, organismos e associações, instrumentalizando pessoas e cooptando lideranças do movimento social, falando em nome e no lugar do povo. Nesse sentido, sob o governo Lula – aprofundando a análise – o que se verifica é um governo que teve a capacidade de interromper o ciclo neoliberal no país, mas ao cooptar o movimento social anestesiou o conflito, paralisou as consciências e, conseqüentemente, a luta emancipatória.
5. Explicitar, aprofundar os fundamentos bíblicos e teológicos de nosso engajamento social. Evidentemente, sem sermos proselitistas faz-se necessário voltarmos sempre às fontes bíblicas de nossas opções políticas e sociais, explicitando-as. A lectio divina, a leitura popular da Bíblia, a meditação bíblica pessoal e comunitária, a espiritualidade bíblica, a celebração eucarística, em suma o Serviço da Palavra é algo permanente e transcendental que a pastoral social deve sempre mais oferecer à Igreja a partir mesmo dos recortes que a caracterizam: leitura bíblica sobre o trabalho humano, teologia negra e indígena, ecoteologia, ecumenismo, reflexão bíblica sobre a migração e os migrantes, o feminino e a Bíblia, a reflexão bíblica a partir da luta terra e dos quilombos, crianças, adolescentes e encarcerados, a reflexão bíblica sobre a pobreza e a exclusão social, a denúncia profética etc.
Esses fundamentos bíblicos estarão em nossos trabalhos e ações sempre em diálogo com as contribuições das ciências humanas, da filosofia e, sobretudo, da ciência política e das ideologias político-partidárias, sem medo do encontro, do confronto e do diálogo necessário com o secularismo, o relativismo e todas as formas de “ismos” modernas e pós-modernas. E será na força das razões últimas de nossa opção, ou seja, na força bíblica de um Deus que se fez homem para resgatar toda a humanidade, que se fez pobre com os pobres, um Deus que criou a todos iguais em dignidade e direitos e que nos convida ser mais a cada dia, empenhando-se na construção de relações pessoais e sociais novas e de um mundo novo, que estará a bússola e o alicerce de nosso Caminho.
6. Na luta pela justiça e por uma sociedade onde os pobres tenham voz, vez e lugar sermos capazes de nos desinstalar, migrar, partir. Muitos militantes e lutadores sociais estão bem instalados em seus mandatos, em suas estruturas organizativas, em suas associações, em suas ONGs, paróquias, movimentos, em seus partidos ou mesmo em suas estruturas pastorais com ar condicionado, ou sem ar, no tempo; mas fazendo a mesma coisa do mesmo jeito há décadas. Contudo, como Abraão é preciso partir.
O tempo é de partir. Um tempo de homens partidos, como diria Drummond, e que exige rigorosamente um êxodo. Partir interiormente/existencialmente colocando novas perguntas à realidade que se apresenta e experimentar a falta de chão, a inquietação da dúvida, colocar em jogo a rotina, as frases prontas, os chavões e deixar-se invadir pelo novo, pelo inesperado. Em muitos casos partir mesmo, interior e exteriormente, ir para as fronteiras onde o inesperado está surgindo e acontecendo. Na verdade, exilar-se para voltar a ver, re-significar, rever.
Sobretudo, o exílio será uma experiência importante para aqueles que fizeram do engajamento, do serviço, da pastoral e da militância social uma profissão. Então é hora mesmo de deixar de ser importante, partir, desinstalar-se, pois a luta política no parlamento continuará precisando de profissionais, mas a transformação social de fato exigirá artesãos, “amadores” como Paulo de Tarso, Francisco de Assis, Pedro Casaldáliga, Dorothy Stang, Pedro Arrupe, Ignacio Ellacuria, Hélder Câmara e tantos que, por algum momento, experimentaram a cegueira e a pobreza da falta de respostas e, depois, de alguma maneira experimentaram em seus corpos a pobreza e a solidão advinda da exploração e da tragédia, na estrada de Damasco, em Assis, em Ribeirão da Cascalheira, no Pará, em Hiroshima, em El Salvador, em Recife e tantos lugares.
A era pós-Lula que se aproxima exigirá artesãos humildes que estejam dispostos a ir às fronteiras do social partilhar um saber com os deserdados da terra, comer com eles, misturar-se a eles, amarrar o seu destino ao destino deles. Tratar-se-à de um artesanato, um engajamento biopolítico que tocará tanto o trabalho quanto a vida ou as relações entre as pessoas. Um momento assumidamente sem pressa de síntese, discurso ou grande narrativa. Isso ficará para depois a cargo dos profissionais e técnicos. Mas a era pós-Lula não precisará deles num primeiro momento. Hoje, contraditoriamente, não são eles a ocupar tanto espaço nos partidos, nas igrejas e na mídia?
Teria uma série de outras tarefas, mas estas podem ser o ponto de partida para uma boa reflexão e debate, no compromisso e caridade que nos une.