Pescadores de frases isoladas e seguidores de si mesmos. A cegueira moral causa em nós a perda da sensibilidade humana

O poeta, ensaísta e presbítero português, José Tolentino Mendonça, recentemente nomeado Arcebispo pelo Papa Francisco, trata de um tema urgente, oportuno e necessário. A sede. Seu livro, “Elogio da Sede”, que recomendo, é itinerário para mudança de paradigmas. Foi ele quem pregou o retiro quaresmal para o Papa Francisco em 2018. Vivemos uma mudança de época, como reconhecem muitos pesadores de nosso tempo. A Igreja segue esse pensamento. O vazio espiritual de nosso tempo, no entanto – Sede de Deus ou falta de sede? – Ao mesmo tempo que tem causado inúmeras dores à humanidade, a tem deixado insensível a dor, quando ela dói no outro. “A dor de nossa sede é a dor da vulnerabilidade extrema, quando os limites nos esmagam” (MENDONÇA, 2014, p33). Isso nos remete ao que o próprio autor trata, “A falta de Sede”, ou a ausência da sede de ter sede. É esta a raiz da “Globalização da Indiferença” denunciada pelo Papa Francisco. Esses limites e essa indiferença que nos esmagam, aparecem ocupando o lugar da consciência crítica; da alfabetização política e religiosa; e, sobretudo da compaixão. E sem consciência crítica, sem compaixão somos escravos felizes. Seres biológicos, mas não biográficos.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman que, juntamente com o filósofo e cientista político lituano Leonidas Donskis, escreveram a imperdível obra “Cegueira Moral – A perda da sensibilidade na Modernidade Líquida”. Eles nos dão uma lente de longo alcance para entendermos a cegueira moral que faz das nossas elites, idiotas morais. Transformando em milícias do desejo de ter, nossas classes médias, que têm tais elites como modelo de ser, e, consequentemente, em um bando de “idiotas bondosos”. Assim, quase que por força da gravidade, se não por osmose, ambas fazem das multidões de cristãos mal catequisados, não evangelizados “Pobres Insatisfeitos que tudo querem experimentar” (GE, 108), como diz o Papa Francisco em sua última Exortação Apostólica, “Gaudete et Exsultate – GE - (Alegrai-vos e Exultai), sobre o chamado à santidade no mundo atual.

Bauman e Donskis serão como que, ideias centrais para este texto que deseja mostrar a atualidade e a precisão de alguns dos termos usados pelos autores para retratar a sociedade da Europa Ocidental há quase meio século, no nosso país hoje. Assim nos dizem eles, “Sob a tirania do momento, porém, instala-se a “fadiga da compaixão” esperando que um novo choque venha rompê-la mais uma vez por um momento fugaz” (BAUMAN, 2014, p 55). Foi necessário, por exemplo, que acontecesse um novo crime hediondo, agora em Brumadinho-MG, para que nossa compaixão fosse acordada. Mesmo que por um instante. Dois anos e três meses depois do crime de Mariana, ninguém se lembrava mais. Mesmo que praticamente nada tenha sido feito, ao menos para amenizar as perdas materiais daquela população violentada.

As dores da terra, dos rios, das florestas, do conjunto de diversidade de vida que agoniza ou talvez tenha morrido por causa daquele crime, nós nem sentimos. Não nos diz respeito. A ponto de a tirania naturalizada hoje, pelo Estado opressor dizer que a política de proteção ambiental pune as empresas que trazem o desenvolvimento e produzem riquezas para o país. Que é preciso acabar com as multas e acabar com as dificuldades criadas por “ecologistas imbecis” para liberar alvarás. E grande parte da população, aplaude o seu tirano preferido, que se excita com o cheiro de sangue. E é essa tirania naturalizada que nos impede de ver o outro. E, não o vendo, não poderemos sentir a sua dor. Perdemos pouco a pouco a capacidade de sentir compaixão, sobretudo, com “desgraça pouca”, a não ser que seja conosco ou com alguém de nossa casa. Vivemos a adiaforização[1] da verdade, da democracia, da compaixão e da política. Do outro, por fim. Consequentemente, a notícia vale pela manchete, pelo título. Pescamos frases no meio dos textos e descontextualizando-as, fazemos delas escravas de nossa maldade ou de nossos interesses. Igualmente o fazemos com os discursos. Pescamos uma frase retirada de um discurso de meia hora de reflexão feita por um intelectual, ou por uma liderança, mutilamos o seu contexto e usamos para justificar a nossa burrice adquirida ou a nossa maldade para quem não ouviu o discurso.  

O Bispo faz uma fala profética fundamentada na Doutrina Social da Igreja, incentivando-nos à participação na política legitimamente, como cristãos e cristãs batizados e comprometidos com a vida plena. E usamos uma frase exilada do discurso para em nome do Bispo desmenti-lo e enganar outras pessoas. Estudar o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nem passa pela vontade. É mais fácil criar vítimas e mártires para terem a atenção e a piedade popular. Assim age a imprensa, falada escrita e televisada e “Resulta que uma “pessoa sadia e normal” pode se transformar durante um tempo em um idiota moral ou um sádico sociopata capaz de matar lentamente outro ser humano, ou em alguém que não demonstra solidariedade diante da dor de um ser humano torturado” (DONSKIS, 2014, p 49). Assim tornamo-nos seguidores de nós mesmos. Nós somos, no mínimo, o máximo! E a atualidade do pensamento dos autores de mostrar quando vemos a seguir que, “O canibalismo verbal e mental, ou a mútua aniquilação moral, significa apenas uma coisa, a rejeição da livre discussão e sua asfixia antes mesmo de ela começar” (ibidem, p 51).

Essa dicotomia entre os cidadãos de bem e os cidadãos de mal, em que os primeiros paradoxalmente, por serem do bem podem, merecem e devem ter uma arma de fogo em casa, é o resultado da “Revolta dos ricos contra os pobres” (BAUMAN, 2014, p78). Ouvimos a grande mídia dizer de diversas formas, na última campanha eleitoral, e ouvimos muitos “Pobres Insatisfeitos” e desprovidos de consciência de classe, repetindo o pensamento de seus opressores, como se fosse a sua palavra. É preciso diminuir os impostos, é preciso acabar com a multas e com os embargos ambientais, é preciso reduzir os direitos trabalhistas, para não penalizar os empresários. Temos que ajudar quem produz! Quem é que produz? São os trabalhadores e as trabalhadoras ou os empresários? Alienados e hipnotizados pelos encantos da tecnologia, que substitui a política, e pela tecnocracia que faz de um demônio vitimizado um anjo do bem, ninguém faz essa pergunta. Ninguém se faz essa pergunta. E assim, naturaliza-se e absolutiza-se a “verdade” que diz, “Quando o rico paga menos, o pobre vive melhor” (ibidem). Alguns, pasme-se! O fazem em nome de Jesus.

Do ponto de vista da fé cristã, a mensagem do Messias de Deus (Lc 9,20), o Filho do Deus vivo (Mt 16,16), que diz, “Venham após mim, e eu farei de vocês pescadores de gente” (Mt 4,19), é mutilada no seu sentido literário e teológico. Pescam-se as frases, pescam-se os versículos isolados do seu contexto, para atender as conveniências. Cria-se um quinto “evangelho”, feito de fragmentos disformes. Sem a misericórdia, sem a compaixão, sem a necessidade ou a exigência de reconhecer os que sofrem como irmãos. Sem exigências, sem compromissos, o Deus deste “evangelho” é “bonzinho”, só dá as coisas. Não pede e não exige nada! Perfeito para uma legião de idiotas que sentem prazer com as injustiças -  desde que não seja comigo -, que se contenta com a substituição da política pelo humor e da religião pelo entretenimento. Neste “evangelho” os preferidos do Reino – pobres, negros, mulheres, homossexuais - são vistos e tratados como impuros. Os presidiários são malditos e merecem morrer e os doentes são vistos como empecilhos, despesas para o Estado e para o orçamento público. Afinal, o Estado não é para cuidar de “vagabundo! ” A educação é atribuída à meritocracia. Quem não pode pagar não deve estudar, dizem descaradamente, em sintonia com seu tirano preferido. Isso só pode ser, com a prática que o Papa Francisco chama de “Forma sutil de pelagianismo” (GE nº 58).

Criam-se vítimas e mártires que são batizados no altar da mídia e consagrados na catedral do mercado. E assim os criminosos e assassinos são transformados em heróis nacionais e são aplaudidos, votados e eleitos. Gasta-se uma infinidade de tempo discutindo-se o que se deve fazer, sem a mínima capacidade de proposição e de efetiva execução. “Por que quebrar a cabeça tentando responder à questão “O que fazer” se não há resposta à questão “Quem o fará”? “ (BAUMAN, 2014, p 106). Os próprios movimentos sociais, os sindicatos, as associações contraíram o vírus dos partidos políticos. A tecnocracia a serviço das estruturas e dos cargos e funções e não da organização e da luta a serviço do bem comum. Assim, “Diante de nossos olhos, a cultura do medo produz a política do medo” (DONSKIS, 2014, p 1117), e a esperança que era presente no começo torna-se desengano, desânimo, quando não divisão e conformismo.   

Hoje continuamos uma maioria dispersa, pedinte, medicante por migalhas de possíveis promessas. Culpamos Moisés por nos tirar do Egito (Ex 16, 2-3), por nos liderar na difícil travessia entre a escravidão e a liberdade. Hoje, damos graças a Deus porque o faraó de agora é mais cabeça dura, é mais coração de pedra, não deu chance a Moisés prendendo-o nas masmorras da desfaçatez, das convicções de magistrados deformados eticamente e desprovidos de caráter. Sem líderes e sem retrovisor, entramos no mesmo matadouro onde nossos ancestrais foram mortos e dizemos, estamos entrando na casa do Senhor. Pescamos frases feitas há séculos e as usamos como se fossem feitas por nós e as damos a quem sequer nos pediu algo. Um dia, talvez, quem sabe, redescobriremos que somos pescadores de gente. Que somos irmãos e que as diferenças nos fazem ainda mais irmãos e irmãs.

Curitiba, 29 de janeiro de 2019 – Segunda Feira.

João Ferreira Santiago
Teólogo, Poeta e Militante.
É membro e assessor do CEBI-PR
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[1] Adiaphoron (plural de adiaphora) em grego significa algo desimportante. Explicação de Leonidas Donskis, p 48).