Tecendo redes de enfrentamento à criminalização e ao genocídio da juventude

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TECENDO REDES DE ENFRENTAMENTO À CRIMINALIZAÇÃO E AO GENOCÍDIO DA JUVENTUDE

Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada
(Gonzaguinha)

 
Introdução

1. Nos dias 27 e 28 de junho e 19 e 20 de setembro de 2015 reuniram-se em Brasília, na Cáritas Brasileira, representantes da Pastoral da Juventude (PJ), da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), da Pastoral da Juventude Estudantil (PJE), da Pastoral da Juventude Rural (PJR) da Juventude Franciscana (JUFRA), da Pastoral Operária, da Pastoral Afro-Brasileira, da Pastoral dos Nômades, da Pastoral do Povo da Rua, da Pastoral da Aids, da Cáritas e da Pastoral Carcerária, com o objetivo de aproximar mais as pastorais em torno da realidade e das demandas juvenis, em vista de se construir um plano de ação conjunto entre as pastorais sociais e as pastorais da juventude.

2. Fruto desse encontro é a presente reflexão, dividida em três partes: 1. Um olhar sobre a realidade juvenil, 2. Iluminação bíblica, teológica e eclesial e 3. Os desafios colocados. Estruturado, portanto, em um VER, JULGAR e AGIR, vislumbra-se que este material possa ser um ponto de partida de um plano de ação no âmbito da Comissão Caridade, Justiça e Paz da CNBB, articulado com as pastorais da juventude e JUFRA, envolvendo mais organismos da Igreja, como as CEB’s e o Conselho de Leigas/os.

3. “De esperança em esperança, sempre na esperança”, como dizia Dom Paulo Evaristo Arns, as pastorais sociais e da juventude querem gritar a Vida e ajudar a fecundar e animar a profecia e a utopia. Nos alimenta as palavras do Papa Francisco às juventudes: “De que serviria dizer que somos seguidores de Cristo se somos indiferentes às dores dos nossos irmãos? (...) Nunca percam a esperança e a utopia (...) Joguem a vida por grandes ideais. Apostem em grandes ideais, em coisas grandes; não fomos escolhidos pelo Senhor para coisinhas pequenas, mas para coisas grandes!”[1].

 

1-   Um olhar sobre a realidade juvenil

“Ei vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito.
Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos.
Por isso, desci para libertá-lo”.
(Ex 3, 7-8)

4. A realidade juvenil e o ser jovem mobilizam diversos e diferentes atores, instituições e ideologias da sociedade. Concorrem, ao mesmo tempo, discursos e abordagens entusiasmados, idealistas e reprovadores sobre a experiência juvenil. Esses discursos e a experiência cotidiana das diversas juventudes são, também, atingidos e influenciados (o que não significa dizer, necessariamente, “determinados”) pelo contexto político, econômico e cultural que estrutura o atual momento histórico que vivemos, refletindo intensamente as atuais relações e conflitos sociais em disputa dentro da sociedade.

5. Fala-se muito sobre a participação política da juventude atualmente. A despeito de afirmações que defendem que os/as jovens de hoje são alienados/as, conformados/as ou conservadores/as, há muita juventude organizada e articulada em lutas e pautas de defesa dos direitos humanos, junto à classe trabalhadora no campo e na cidade, militando nas comunidades pobres e marginalizadas, na preservação do meio ambiente, na afirmação dos direitos das mulheres e das questões de gênero, na luta pela cultura de nossos povos originários e da cultura e arte periférica. As grandes “Jornadas de junho de 2013” também mostraram novas formas de organização política da juventude, onde o poder do capital foi contundentemente questionado e reprovado. A presença e o protagonismo de jovens em movimentos populares, sindicatos, partidos, coletivos culturais e das “quebradas”, ong’s, grêmios estudantis e organizações de bairro evidenciam participação ativa e comprometida com reivindicações populares que partem das pessoas mais empobrecidas. Isso não é diferente na Igreja, especialmente nas Pastorais da Juventude e nas Pastorais Sociais, isso desde a Ação Católica Especializada até os nossos dias[2]. A vivência em comunidade, a centralidade da espiritualidade em Jesus e no Reino, a Teologia da Libertação, o processo de formação integral em vista de mulheres e homens sujeitos na história e a opção preferencial pelos pobres são características centrais dessa experiência na Igreja.

Entre a sobrevivência e o extermínio – As facetas da violência contra a juventude

O Genocídio

6. Em uma sociedade cindida entre ricos e pobres, dividida em classes sociais separadas por um abismo devido à desigualdade socioeconômica, a situação[3] da juventude empobrecida permanece precária[4]. Mais que isso: a sobrevivência dessa juventude é cotidianamente ameaçada. Ela é obrigada a (sobre)viver junto à violências de todas as ordens, conduzidas ao limite do seu extermínio físico e social.

7. Segundo o Mapa da Violência 2014[5], o Brasil registrou, em 2012, 56.337 homicídios, atingindo a taxa de 29 assassinatos por 100 mil habitantes. Desse total, 30.072 foram pessoas jovens, o que faz a taxa de homicídios subir, tratando-se exclusivamente da população juvenil, para 57,6/100 mil, tendo o pico na faixa entre 20 e 24 anos de idade (nesta idade, a taxa chega à 66,9/100 mil). De acordo com o Mapa da Violência 2015[6], do total de óbitos de jovens de 16 e 17 anos em 2013, 46% foram causados por homicídios.

8. Os números são ainda mais alarmantes quando se referem à situação da juventude negra: enquanto 6.823 jovens brancos foram assassinados em 2012[7], 23.160 jovens negros tiveram suas vidas tolhidas. Isso significa que a taxa de homicídios do primeiro grupo chegou à 29,9/100 mil, ao passo que no segundo atingiu 82,3/100 mil. Naquele ano, portanto, foram mais de 63 jovens negros assassinados por dia. Neste contexto, ainda, ganha relevo a altíssima letalidade da polícia brasileira[8], explícita nos números de mortes causadas em suas intervenções e maquiada pelos grotescos “autos de resistência”[9]. Evidencia-se o que tanto as Pastorais da Juventude como o que inúmeros Movimentos Sociais vêm gritando há anos: está em curso um verdadeiro genocídio da juventude negra brasileira.

9. Consubstanciado aos hiperbólicos números de assassinatos que ceifam a vida de jovens, está o processo de encarceramento em massa das pessoas pobres e marginalizadas, em sua grande maioria jovens e negras, e que consiste na outra faceta do genocídio[10]. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)[11], do Ministério da Justiça, o Brasil tinha 607.731 pessoas presas em junho de 2014, sendo o 4º país com maior população carcerária. Apesar de representar 21,5% da população total do Brasil, a juventude entre 18 e 29 anos representa 56% das pessoas encarceradas. Ao mesmo tempo, 67% do total de pessoas presas são negras[12]. Nas cadeias brasileiras povoam casos de maus-tratos e torturas e toda espécie de violações de direitos e da integridade e dignidade da pessoa presa e dos seus familiares, desde os precários serviços oferecidos e a superlotação das unidades até a infame e degradante revista vexatória[13]. Parte fundamental desse processo de encarceramento é a seletividade penal do sistema de justiça. Além de manter mais de 40% de pessoas presas sem condenação (presos provisórios), o judiciário brasileiro não hesita em aprisionar majoritariamente, como já dito, a juventude pobre, preta e periférica, distinguindo ainda os tipos penais que devem ser alvo da repressão encarceradora[14].

10. A situação de adolescentes e jovens com menos de 18 anos que cumprem medidas socioeducativas não é diferente. O sistema de justiça opta pela política de encarceramento. De acordo com a Nota Técnica “O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal[15], do IPEA, a grande maioria das infrações cometidas por pessoas com menos de 18 anos não atenta contra a vida. Mesmo assim, a medida mais aplicada pelo sistema de justiça é a internação. Segundo Enid Rocha, do IPEA, “para o Estatuto da Criança e do Adolescente, as medidas de internação devem respeitar os princípios da brevidade e da excepcionalidade. (...) observamos que os princípios não são seguidos, se fossem cumpridos, os adolescentes internos seriam aqueles que cometeram infrações graves como homicídios, estupros e latrocínios, apenas 3,2 mil do total, e não 15 mil, como encontramos”. As unidades de internação no Brasil, em sua imensa maioria, também reproduzem as mesmas mazelas e violências do sistema carcerário para maiores de 18 anos, como precariedade dos serviços, superlotação, maus-tratos e torturas. A maior parte de adolescentes e jovens internada é do sexo masculino (95%), negra, não frequente em escola e considerada extremamente pobre.

11. Sob o Estado Penal[16], instrumento essencial do atual momento do capitalismo, a juventude preta, pobre e periférica não contemplada em seus direitos sociais e humanos, tenta (sobre)viver mesmo submetida ao tratamento policial, penitenciário e punitivo. Negligencia-se a essa juventude a condição de cidadã e de sujeito, uma vez que criminalizada e estigmatizada. Ela é tratada como “problema”[17], engendrando políticas que a tem como transgressora de condutas morais, como população suspeita, como contingente que promove práticas e comportamentos de riscos. É uma perspectiva, portanto, de criminalização dessa parcela da juventude, fartamente hidratada por programas e meios midiáticos hegemônicos.

As violências do atual modo de produção

12. O mundo do trabalho também revela que a juventude é a mais punida pelas injustiças e desigualdades da atual ordem econômica. No Brasil, segundo o relatório “Tendências Mundiais de Emprego 2014”, da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[18], a taxa de desemprego entre jovens é superior se comparada aos não jovens. De acordo com a OIT, 18,4% das pessoas com até 29 anos de idade não trabalhavam nem estudavam. Dados da PNAD Contínua, divulgada em maio de 2015 pelo IBGE[19], apontam que enquanto a taxa média de desemprego no país ficou em 7,9%, entre os jovens de 18 à 24 anos o índice sobe para 17,6%. A PNAD identificou aumento de desemprego entre a população juvenil no primeiro trimestre de 2015 em relação ao último trimestre de 2014. Os ciclos de crise do capitalismo atingem todos/as os/as trabalhadores/as, mas é mais sensível na realidade juvenil.

13. Ao lado do desemprego, a precariedade das condições e das relações de trabalho também penalizam principalmente a juventude. São inúmeros os problemas, como baixos salários, ausência de direitos trabalhistas em decorrência de precaríssimos contratos empregatícios, jornadas de trabalho extenuantes, alta rotatividade. As medidas de ajuste fiscal e a “lei da terceirização” apresentadas em 2015 aprofundarão a realidade que acaba de ser citada, dificultando ainda mais o acesso ao direito ao trabalho. Não se observa, ao mesmo tempo, grandes avanços e melhorias na situação da juventude trabalhadora do campo, submetida à uma intensa mobilidade migratória que, em numerosos casos, resulta em exploração trabalhista e rompimento forçado das raízes e laços familiares e culturais. Este cenário é ainda mais acentuado quando se trata das pessoas imigrantes latino-americanas, especialmente entre os/as muitos/as jovens que trabalham em condições análogas à escravidão, que são excluídos/as de direitos sociais e que são recorrentemente agredidos/as por violências xenófobas difundidas em nossa sociedade.

14. A precariedade do mercado de trabalho somada a outras realidades gritantes como a pobreza e a exclusão social, por exemplo, podem ser fatores decisivos que levam muitos/as de nossos/as jovens à situação de vulnerabilidade. Com frequência, a juventude, fragilizada por toda essa leva de realidades citadas, acaba se tornando alvo fácil das armadilhas do tráfico humano[20]. No Brasil uma das modalidades mais visíveis do tráfico humano contemporâneo é o trabalho escravo: jornadas de trabalho exaustivas, ameaças físicas ou psicológicas, servidão por dívida e condições degradantes de trabalho têm sido encontrados tanto no meio rural como no urbano. Segundo cálculo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com base nos dados do seguro-desemprego, entre os trabalhadores resgatados do trabalho escravo entre os anos de 2003 e 2014, 9.776 eram jovens na faixa etária de 18 a 24 anos (30% do total de resgatados), além de outros 377 com idade inferior a 18 anos. Se forem considerados juntos ainda os 10.835 resgatados na faixa de 24 a 34 anos, o total perfaz 20.988 pessoas. Ou seja, quase 2 em cada 3 resgatados. O trabalho escravo encontra entre os jovens a maior parte de suas presas.  Erradicar esse crime é um grande desafio para a nossa sociedade. É necessário criar e fortalecer políticas públicas que venham quebrar o ciclo do trabalho escravo e apontem para a superação do atual modo de produção, marcadamente predatório e violento. Somente assim poderemos erradicar essa chaga social que é o trabalho escravo.

15 - Há de considerar a realidade da juventude indígena, quilombola e das comunidades tradicionais. São jovens que trazem consigo uma densa e rica tradição cultural, assim como condições de vida social com características peculiares e carregadas pela história de seus povos. Os territórios onde vivem as comunidades as quais estes jovens pertencem estão em permanente ameaça pela cobiça que despertam em empresas ligadas à mineração, agronegócio ou empreendimentos imobiliários[21]. Aos olhos do mercado estes territórios devem ser fonte de lucro, o que justifica o avanço do capitalismo sobre os mesmos. A sobrevivência física também é um problema sério pela pobreza e miséria em muitas comunidades, fruto do processo histórico de negligência do Estado. Mesmo que existam políticas públicas voltadas para estes grupos, o acesso a elas nem sempre é facilitado. Estes jovens também vivem o conflito entre a cultura das suas comunidades e as outras propostas de vida. Nem sempre esta tensão, própria do encontro de diferentes culturas, é equacionada sem conflitos profundos na vida destes jovens.

O sistema de ensino

16. No campo da educação, o sucateamento da educação pública demonstra claro descaso das esferas governamentais para com a população jovem. A educação pública, no país, representa 86% da educação nacional, o que corresponde a 46 milhões de estudantes, sendo os outros 14% da educação controlados pela iniciativa privada (associações, instituições particulares e filantrópicas). O censo demográfico do IBGE (2010) revelou que 52,3% dos brasileiros se autodeclaram pardos e pretos, contudo, essa mesma parcela representa apenas 13,2% dos estudantes universitários. Em relação à educação básica, o censo demonstrou ainda que 49,3% dos brasileiros com 25 anos ou mais não concluíram o ensino fundamental; no campo, esse percentual sobe para 79,6%[22]. Soma-se a esses números que mais da metade dos jovens entre 15 e 17 anos não está cursando o ensino médio. Registra-se, ainda, uma grande evasão escolar dos/as matriculados/as no ensino médio público, especialmente no período noturno. Há muita demanda juvenil para o ensino médio, o que não justifica, por certo, políticas de superlotação de salas de aula ou de fechamento de escolas, como temos observado em inúmeros estados do país. Os investimentos do Brasil no campo da educação estão aquém dos índices mundiais. Um estudo do Banco Mundial (2011) demonstrou que a remuneração média de um professor, no Brasil, equivale a US$ 10,6 mil dólares por ano. O valor é apenas 10% do que ganha um professor na Suíça, onde o salário médio dessa categoria seria de US$ 104,6 mil dólares anuais.

As violências contra as mulheres jovens

17. Nesse contexto de precarização da vida da juventude empobrecida, as mulheres jovens sofrem ainda mais as agressões e as injustiças. Não obstante a população carcerária ser em sua maioria formada por homens, observa-se nos últimos anos um aumento proporcionalmente maior de encarceramento de mulheres, (sobre)vivendo em condições extremamente desumanas dentro do sistema prisional. No mundo do trabalho, as mulheres ainda representam o maior contingente de pessoas desempregadas em relação aos homens, além de receberem, em média, menores salários. Essa situação se aprofunda ainda mais quando as mulheres são jovens e negras. Indubitavelmente, a estrutura machista, patriarcal e racista perpassa a estrutura da atual ordem político-econômica. O machismo e o patriarcalismo também são explícitos nos absurdos casos de estupros e nas diferentes modalidades de agressões sofridas por mulheres no espaço público e, especialmente, no ambiente privado, muitas das vezes promovidos por homens próximos e do convívio cotidiano. Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou, em 2014, uma média de 130 estupros por dia. No entanto, de acordo com o IPEA, apenas 10% dos casos chegam a ser notificados à polícia[23]. Os casos de estupros atingem, principalmente, pessoas do sexo feminino menores de 13 anos e adolescentes e jovens.

As violências contra a juventude LGBTI

18. Em relação à juventude LGBTI, há um amplo leque de violências e discriminações sofridas a todo o momento. Logo de início, essa juventude é, na maioria das vezes, eclipsada em diversos dados oficiais, dificilmente aparecendo nas estatísticas do sistema carcerário, do sistema de medidas socioeducativas, nos índices de violência policial, nos relatórios sobre trabalho e direitos sociais. Se considerar as juventudes como estatística já é um descalabro, pois massifica a diversidade e as subjetividades, restou à juventude LGBTI ser tratada ou como inexistente ou, perversamente, como anomalia[24]. A juventude LGBTI sofre diariamente desde seu espaço familiar até os diversos meios sociopolíticos, econômicos, culturais e religiosos. São pessoas discriminadas pela sua orientação ou condição sexual. Sofrem ainda mais discriminação quando são profissionais do sexo e, pior ainda, quando são soropositivas. No mundo dos presídios elas são a subpopulação daquele meio, tentando se agrupar para se proteger. Sofrem ameaças constantes da polícia quando vivem nas ruas, principalmente na prostituição e pior ainda quando são negras. É inegável como a cultura do ódio e da intolerância alimentam a discriminação em relação à juventude LGBTI. Falta ao conjunto da sociedade avançar na reflexão e nas relações de gênero, descontruindo os preconceitos e as imposições aos corpos e às condutas.

Juventude criminalizada

19. No primeiro semestre de 2015, os discursos e as pautas mais punitivas e conservadoras tomaram a dianteira na cena pública e política. As propostas de retiradas de direitos trabalhistas e os projetos de redução da maioridade penal ou de reformas retrógradas do ECA são expressões e mecanismos de um modelo sócio-político-econômico que massacra as pessoas e comunidades pobres, e que invariavelmente dilacera a vida da juventude mais marginalizada, destacadamente, as/os jovens negras/os. Assistimos um verdadeiro processo de criminalização dessa juventude, rotulada como risco social e promotora de desordens e crimes. A essa juventude é atribuída toda a culpa pelas violências que ocorrem na sociedade. Os que exploram o medo da população, justificam ações truculentas e chegam a incentivar atos de violências. Vimos isso em casos de jovens negros acorrentados em postes, em espancamentos e linchamentos de jovens pobres e negros, nas violentas repressões policias em bailes e festas juvenis nas periferias das cidades, em abordagens policias em ônibus no Rio de Janeiro, em intervenções policias dentro de escolas públicas. Tratada dentro do âmbito da segurança pública, o Estado se faz presente na vida desta juventude quase que exclusivamente na forma de punição, polícia e penitenciária.

20. A manutenção da desigualdade e das injustiças sociais se dá nessa complexa engrenagem que combina considerar e classificar determinada parcela da juventude como “risco”, como “não cidadã”, como “exterminável”[25], com todo um aparato repressivo (polícia, recrudescimento penal, judiciário encarcerador, mídia hegemônica punitiva, expansão e incremento do sistema carcerário) que, por sua vez, alimenta toda uma indústria da segurança. Mecanismos, portanto, fundamentais para difundir medo e insegurança e justificar o controle e as técnicas de repressão, visando a contenção dessa mesma juventude que é apartada dos direitos ao trabalho, à educação de qualidade, ao lazer, ao esporte, à moradia, à saúde. Ainda, esses mecanismos servem para subjugar politicamente as juventudes que buscam resistir às opressões e que se organizam para reivindicar melhores condições de vida.

 

2- Iluminação Bíblica, Teológica e Eclesial

“Faze com alma o que na vida te for dado fazer.
Mas, não esqueças nunca de integrar-te
nos grandes planos de Deus.
(Dom Helder Câmara – Mil razões para viver).

21. A realidade que envolve a juventude no Brasil é marcada por situações que crucificam muitos jovens, condenados ao sofrimento e à perda precoce de sua vida. Os jovens pobres, negros e de periferia na sua maioria enfrentam na própria vida a experiência do Cristo chagado, cuspido, tombado, morto nas piores circunstâncias. No entanto, imaginamos que o Deus da caminhada, de Abraão, Isaac, Jacó, dos profetas e de Jesus de Nazaré, continua hoje caminhando conosco. Somos interpelados pelo Deus que “vê, escuta, desce e se coloca a caminho” com seu povo sofrido (Ex 3, 7-10). Deus se sensibiliza com o clamor do seu povo escravizado e chama Moisés como protagonista da sua libertação. O êxodo da escravidão do Egito constitui um novo paradigma para a ação pastoral. Somos interpelados a tomarmos atitudes pelos empobrecidos, a exemplo de Jesus, e assumirmos nossa missão em defesa da plenitude da vida. A opção preferencial pelos “estrangeiros, órfãos e viúvas” nos livros históricos (Dt 24, 17-18; Ex 23, 9; Is 10, 1-3), revela a opção de Deus pelos “pequenos e frágeis”.

22. O profeta Isaías (no livro de Isaías) apresenta um caminho de libertação com o povo oprimido/exilado no cativeiro da Babilônia, a partir da imagem do Servo Sofredor. Os passos apresentados pelo profeta soam para nós como uma metodologia de resistência e enfrentamento ao sistema opressor que, como diz o Papa Francisco, é um “sistema insuportável[26]”. Primeiramente o coletivo de oprimidos e escravizados se reconhece como escravizado, submetido em relação a um opressor (Is 42, 1-9). No segundo cântico (Is 49, 1-6) o povo escravizado acolhe a situação para em seguida se organizar para a luta e a resistência (Is 50, 4-9). O terceiro cântico é o oprimido se rebelando, se organizando, reconhecendo o seu poder, sua força e, sobretudo, Deus está contigo. “(...) nem escondi meu rosto dos insultos e escarros” (Is 50, 6b), na certeza de que esse é o projeto de Deus (Is 50, 7). Por fim, como cantamos “toda luta verá o seu dia, nascer na escuridão”, o quarto Cântico (Is 52, 13. 53, 12) celebra a vitória do Servo, do povo escravizado.

23. Em Lc 4, 16-24 (Is 61, 1-2), Jesus assume o compromisso com os pobres, injustiçados, marginalizados, oprimidos, cativos, doentes e com o anúncio do ano da graça: o perdão e a partilha. Ele faz a sua opção clara, por aqueles que sofrem, que são escravizados, e deste modo se coloca “com” os sofredores. A missão de Jesus libertador dos pobres é apresentada como um resumo resgatado do profeta. Na sua opção política e religiosa, Jesus expressa que a salvação passa pelo compromisso com os pobres e marginalizados: ele proclama as bem-aventuranças (Mt 25); cura os enfermos (Jo 5, 1-18); dialoga com a Samaritana (Jo 4, 1-15); exalta o bom samaritano (Lc 10, 25-37); acolhe a prostituta (Jo 8, 1-11); toca os leprosos (Lc 5, 12-16); vai na casa do cobrador de imposto (Lc 19, 1-10). O exemplo e os ensinamentos do Jesus é colocado em prática na comunidade dos primeiros cristãos, que ao romperem com um modelo de sociedade individualista, injusta e punitivista criam as possibilidades para a maior comunhão entre os discípulos (At 2, 42-47), modelo para relações humanas e estruturas sociais fraternas e solidárias.

24. A Constituição Conciliar Gaudium et Spes revela que “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também alegrias e esperanças, tristezas e angustias dos discípulos de Cristo”[27]. O mesmo documento nos lembra que “para desempenhar tal missão, a igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpreta-los à luz do evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração”[28]. O Papa Francisco por sua vez nos convida a “ter cheiro das ovelhas”, e ressalta que prefere uma “igreja acidentada”, do que uma igreja doente/enferma. As pastorais sociais e de juventudes são pastorais acostumadas com o conflito. Enfrentam a sociedade e seus dilemas, como outrora já mencionados.

25.  Na Encíclica Laudato Si’ o Papa Francisco convida toda a humanidade a olhar com carinho e cuidado a nossa “casa comum” que está ferida devido ao despotismo humano. A terra está doente e junto com ela a humanidade também. O paradigma tecnocrático contribuiu para uma ação despótica do ser humano em relação à obra criada. O resultado desta opção histórica se percebe na crise da água, na diminuição acentuada da biodiversidade e no aumento do número de pobres no mundo, apesar do inegável avanço técnico-científico. É uma crise ecológica com raiz humana caracterizada pelo modo desordenado de conceber a vida, que contradiz a realidade até o ponto de a arruinar[29]. A cura virá através de uma opção clara e inequívoca por outro modo de vida ao qual o Papa chama de ecologia integral porque compreende as dimensões humanas e sociais. O Papa fala, portanto, de relações e estruturas sociais promotoras de vida, que superem as atuais condições alicerçadas na violência, na exploração e na desigualdade. Os/as jovens são convidados/as a protagonizarem esta virada paradigmática rumo a uma nova forma de relação do ser humano com o meio ambiente fundada na conversão ecológica[30] e na capacidade de sair de si mesmos rumo a uma espiritualidade de integração com a obra criada.

26. As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil propostas para o quadriênio 2015-2019 convidam, a partir de Jesus Cristo, a continuarmos a missão evangelizadora em sua integralidade. Foram atualizadas de forma que as Igrejas particulares, pastorais e movimentos tenham condições de dar continuidade aos processos de reflexão e planejamento já iniciados. A juventude, junto com as crianças e adolescentes, é mencionada nas indicações de operacionalização da 5ª urgência, “a igreja a serviço da vida plena para todos”, pelas tantas situações de ameaça pelas quais passa[31].

27. Por compreender a opção preferencial pela juventude e pelos/as pobres que a Igreja Latino-Americana faz (logo, tendo uma opção preferencial pela juventude empobrecida), e especialmente por ter os e as jovens como “lugares teológicos” (cf. Doc. 85 da CNBB, n. 81), compreende-se a importância de construir espaços de estudo, de cuidado e de se pautar a vida da juventude em todas as suas dimensões, sabendo que são válidas todas as experiências que venha a convergir para isso. Outra motivação provocada pelo Documento de Aparecida é o destaque dado à necessidade de haver metodologias pastorais que procurem maior sintonia entre o mundo adulto e o mundo juvenil (DAp, n. 446).          

3      - Os desafios colocados

Religião pura e sem mancha diante de Deus, nos Pai, é esta:
Socorrer os órfãos e as viúvas em aflição,
e manter-se livre da corrupção do mundo.
(Tg 1, 27)

São Paulo, depois de tantos dogmas que anuncia, tantas brigas teológicas, tantas intrigas por cultura, dá um conselho único: o que eu peço de vocês é que não esqueçam dos pobres; o que eu peço de vocês é que não esqueçam a opção pelos pobres, essencial ao Evangelho, à Igreja de Jesus. A opção pelos pobres.

(Dom Pedro Casaldáliga)

28. A Fé e a Espiritualidade Cristã nos impulsionam à comunhão com toda a criação e a um estado de permanente profetismo. Como discípulos/as e missionários/as do Jovem de Nazaré, buscando a construção do Reino, somos convocados e convocadas a alertar a sociedade sobre tudo aquilo que atenta contra o Projeto de Deus e a dignidade humana. Como o profeta Jeremias, temos que gritar e não podemos nos calar, e não precisamos ter medo uma vez que temos a certeza de que Deus está conosco e junto dos/as empobrecidos/as (cf. Jr 1, 4-10). Impõe-se a nós, também, cultivar a esperança e tecer práticas e propostas encharcadas de fraternidade e comunhão.

29. Frente à conjuntura e à realidade marcadas por tantas vidas juvenis agredidas e destroçadas, três grandes questões impõem-se como centrais: a) a criminalização de jovens mulheres e homens pobres, da classe trabalhadora e popular, das comunidades tradicionais, do campo e da cidade; b) as pautas conservadoras que alienam, (de)formam, criam mentalidades e influenciam as práticas da juventude cristã, e; c) o genocídio da juventude pobre, preta e periférica, promovido, essencialmente, pela ação policial, pela precarização do trabalho, pelo encarceramento e pelo racismo.

30. Esta realidade atinge os mais pobres entre os pobres, e o seu enfrentamento e superação significam o processo de construção de novas e libertadoras estruturas e relações sócio-político-econômicas. Frente a isso, traçam-se os seguintes desafios, que se articulam e se complementam entre si:
 

Situações estruturais

Desafios

Criminalização de jovens mulheres e homens pobres, da classe trabalhadora e popular, das comunidades tradicionais, do campo e da cidade.

1) Enfrentar e superar a cultura punitivista, machista e patriarcal;

2) Enfrentar e abolir a sociedade de classes pautadas na lógica do mercado e do consumismo;

3) Trabalhar a noção de que o Brasil é uma nação pluri-étnica e multi-racial;

4) Pautar uma efetiva democratização do Judiciário mas, principalmente, criar e propor formas horizontais e populares de formulação e resolução dos conflitos sociais, fugindo à judicialização desses conflitos;

5) Disputar o conceito e reafirmar a defesa dos direitos humanos;

6) Combater os discursos hegemônicos e disputar do imaginário popular; produzir “contra informação”;

7) Denunciar e enfrentar o modelo do agronegócio, e disputar politicamente o modelo de agricultura camponesa e agroecológica como hegemônico.

Pautas conservadoras que alienam, (de)formam, criam mentalidades e influenciam as práticas da juventude cristã.

1) Identificar, desmascarar e denunciar as pautas conservadoras de nossa sociedade;

2) Formar lideranças jovens populares;

3) Formar comunicadores/as para difundir as pautas populares e libertadoras;

4) Criar meios e instrumentos alternativos e populares de comunicação, sempre como o protagonismo do povo;

5) Reformar os conceitos: construir e desconstruir;

6) Recuperar a imagem de Deus misericordioso e libertador;

7) Fortalecer as organizações juvenis dentro da Igreja, especialmente as pastorais da juventude.

Genocídio da juventude pobre, preta e periférica promovido, essencialmente, pela ação policial, pela precarização do trabalho, pelo encarceramento e pelo racismo.

1) Lutar pela desmilitarização da polícia e pelo fim dos autos de resistência;

2) Lutar pela ampliação de políticas públicas de acesso e permanência no ensino público, gratuito, universal e de qualidade, seja na educação básica seja no ensino superior;

3) Lutar pela dignidade no mundo do trabalho, de mulheres e homens, do campo e da cidade, respeitando a idade mínima e condições de trabalho;

4) Lutar por uma política de desencarceramento e contra a privatização de presídios.

5) Defender ações afirmativas e a efetivação de leis que combatam o racismo;

6) Enfrentar o racismo institucional;

7) Fortalecer as organizações de mulheres que pautam novas estruturas de relação entre homens e mulheres.

 

4- Com muita fé na caminhada

31. São inúmeras as lutas e as realidades que nossas pastorais estão inseridas. Nos últimos anos, falamos muito em fragmentação das ações, das pautas e dos enfrentamentos, e o quanto isso enfraquece a mobilização do povo e a construção de propostas e de políticas. Neste momento histórico, porém, fica cada vez mais evidente que a criminalização das camadas mais populares, os discursos e posições mais conservadores e a violência por parte das forças repressivas do Estado a serviço da manutenção do status quo atingem a população e as realidades onde as pastorais sociais e de juventude atuam e estão presentes. Mais ainda, seja no campo ou na cidade, em todas as nossas áreas de inserção, são os/as jovens pobres que têm suas vidas mais precarizadas e vulnerabilizadas. As situações estruturais e os desafios colocados na presente reflexão não são, portanto, estranhos às nossas caminhadas pastorais. Ao contrário, atuar sobre eles é estrategicamente fundamental para a construção de uma nova ordem social.

32. Ao mesmo tempo, também tanto no campo como na cidade, as diversas expressões, mobilizações e articulações juvenis revelam que os/as jovens não estão, de forma alguma, passivos frente à realidade. Por um lado, são muitas as organizações juvenis que criam e recriam métodos e formas de ação política cada vez mais democráticos e articulados com as população pobre. Nossas Pastorais Sociais e Pastorais de Juventude têm inúmeras parcerias com vários movimentos com esse perfil. Por outro lado, muitos/as jovens não organizados/as em movimentos ou em entidades também não se conformam com as desigualdades e as injustiças vigentes, desconstruindo as generalizações que taxam as juventudes como conservadoras e alheias à realidade política.

33. O fortalecimento da articulação das pastorais e organismos que atuam cotidianamente nas situações e realidades sociais extremas, assim como a maior articulação destes com os movimentos sociais e populares, é questão indispensável para a urgente e necessária ação contra as violências que afligem a juventude empobrecida, situação que nos convoca a termos uma atuação transformadora e libertadora.

34. “Somos povo da esperança”. Mesmo frente a uma conjuntura extremamente adversa, não sufocamos a utopia, que não é quimera mas fonte que alimenta a caminhada. Como disse o Papa Francisco, Deus nos escolheu para coisas grandes. E vale lembrar dos conselhos de Dom Pedro Casaldáliga na Romaria dos Mártires da Caminhada de 2011: “(...) há muita amargura, há muita decepção, há muito cansaço… Isso é heresia! Isso é pecado! Nós somos o povo da esperança, o povo da Páscoa. O outro mundo possível somos nós! A outra Igreja possível somos nós! Devemos fazer questão de vivermos todos cutucando, agitando, comprometendo. Como se cada um de nós fosse uma célula-mãe espalhando vida, provocando vida. (...)Podem nos tirar tudo, menos a via da esperança. Vamos repetir: Podem nos tirar tudo, menos a via da esperança!”.

 

[1] PAPA FRANCISCO, “Carta aos participantes do 11º Encontro Nacional da Pastoral da Juventude”, 21 de janeiro de 2015.

[2] Para mais informações sobre a história, as pautas, a pedagogia e a espiritualidade das organizações pastorais de juventude na Igreja, ver: “Marco Referencial da Pastoral da Juventude do Brasil” (Estudo 76 da CNBB); “Civilização do Amor: Tarefa e Esperança – Orientações para a Pastoral da Juventude Latino-americana” (CELAM); “Evangelização da Juventude: desafios e perspectivas pastorais” (Documento 85 da CNBB).

[3] A compreensão da realidade juvenil passa pela distinção entre o que Helena Abramo denominou de “condição” e “situação” juvenil: “condição (o modo como uma sociedade constitui e atribui significado a esse momento do ciclo da vida, que alcança uma abrangência social maior, referida a uma dimensão histórico geracional) e situação, que revela o modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referidos às diferenças sociais – classe, gênero, etnia etc”. (ABRAMO, Helena W., Condição juvenil no Brasil contemporâneo, in “Retratos da Juventude Brasileira”, Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo, 2005). É importante também ressaltar o critério etário. Para tanto, partimos do que está estabelecido atualmente pelo Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013), que considera jovens as pessoas entre 15 e 29 anos de idade.

[4] Ver documento 85 da CNBB, “Evangelização da Juventude: desafios e perspectivas pastorais”, parágrafos 230 à 246.

[5] WAISELFISZ, Júlio Jacobo, “Mapa da Violência 2014 – Os jovens do Brasil”, FLACSO Brasil, Rio de Janeiro: 2014 (http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf).

[6] WAISELFISZ, Júlio Jacobo, “Mapa da Violência 2015 – Adolescentes de 16 e 17 no Brasil”, FLACSO Brasil.

[7] WAISELFISZ, Júlio Jacobo, “Mapa da Violência 2014 – Os jovens do Brasil”.

[9] As mortes ou as lesões corporais cometidas pela polícia são registradas como “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”, não sendo submetidas à investigação. Os “autos de resistência” se sustentam, por exemplo, no artigo 292 do Código de Processo Penal, e foram uma criação da Ditadura Militar.

[10] É fundamental a análise de Michel Foucault quando trata do “racismo de Estado” e da “biopolítica”, da gestão sobre quais vidas são matáveis: “Quando vocês têm uma sociedade da normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda a sua superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo. (...) É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns os riscos de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, M., “Em Defesa da Sociedade”, São Paulo, Martins Fontes: 1999, p. 306.)

[11] DEPEN, “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen – junho de 2014” (http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf).

[12] Demonstrando que o aprisionamento se volta contra as pessoas socialmente excluídas e marginalizadas, seguem os seguintes dados: do total de pessoas encarceradas no Brasil, 15% são analfabetas, 53% têm ensino fundamental incompleto e 12% ensino fundamental completo. (Cf. DEPEN, “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen – junho de 2014”)

[13]Conjuga-se gravemente com esse processo de encarceramento em massa a degradação do sistema prisional, consubstanciado na violação dos direitos mais básicos da população carcerária: apenas 10% têm acesso a alguma forma de educação; somente 20% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é manifestamente frágil, com quadro técnico exíguo e diversos casos de graves doenças e até de óbitos oriundos de negligência; as unidades são superlotadas: o Brasil ostenta a maior taxa de ocupação prisional (172%) entre os países considerados “emergentes”; torturas e maus-tratos campeiam, com a conivência dos órgãos responsáveis por fiscalizar as unidades prisionais. (...)É de se mencionar, também, a penalização de mulheres familiares de pessoas presas. Nas filas de visita, a revista vexatória perdura, vergonhosamente, como prática estatal para penalizar, torturar e humilhar familiares, geralmente mulheres, que viajam longas distâncias para visitar o ente querido preso, quando não são dissuadidas pelos próprios presos de enfrentar essa prática abjeta.” (Agenda Nacional pelo Desencarceramento, disponível em www.carceraria.org.br).

[14]Ao caráter massivo do encarceramento no Brasil soma-se o caráter seletivo do sistema penal, expresso na discriminação de bens protegidos e de pessoas alvejadas: de um lado, apesar das centenas de tipos penais constantes da legislação, cerca de 80% da população prisional está presa por crimes contra o patrimônio (e congêneres) ou pequeno tráfico de drogas; de outro, apesar da multiplicidade étnica e social da população brasileira, as pessoas submetidas ao sistema prisional têm quase sempre a mesma cor e provêm da mesma classe social e territórios daquelas submetidas, historicamente, às margens do processo civilizatório brasileiro: são pessoas jovens, pobres, periféricas e pretas.” (Agenda Nacional pelo Desencarceramento, disponível em www.carceraria.org.br).

[16]A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os país (...) Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos – ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos valores de justiça social e de solidariedade – e seu tratamento penal – que visa as parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle, diante da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos – coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados na América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru.” (WACQUANT, L., “As Prisões da Miséria”, Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 9 e 10.)

[17] Sobre os paradigmas através dos quais a juventude é abordada e tratada nas políticas públicas e sociais, ver a distinção entre juventude como “etapa preparatória”, “etapa problemática”, “ator estratégico do desenvolvimento” e “sujeito de direitos” em “O uso das noções de adolescência e juventude no contexto brasileiro”, de Helena W. Abramo.

[20] Ver MINISTERIO DA JUSTIÇA. Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas: consolidação dos dados de 2005 a 2011. Brasília, 2013, p. 6.

[21] Cf. CNBB, DGAE, n. 22

[22] Sobre os dados da educação pública no país, veja o site da ONG “Educação Pública Eu Apoio” (http://educacaoeuapoio.com.br/numeros/) e do Governo Federal (http://www.qedu.org.br/brasil/censo-escolar).

[24] Sobre um pouco da realidade da juventude transexual ou transgênera, ver o mini documentário “(trans)fobia”, em https://www.youtube.com/watch?v=VoLSV2_0Gwg. É emblemático o caso da morte da jovem travesti de 18 anos, Laura Vermont (http://ponte.org/justica-manda-soltar-pms-suspeitos-de-envolvimento-em-morte-de-jovem-travesti-em-sp/ ).

[25] São essenciais as palavras do Papa Francisco: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social”. Esta economia mata. (...) O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que pode usar e depois lançar fora. (...) Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’”. (Evangelii Gaudium, 53)

[26] Discurso com Movimentos Populares, Bolívia, 09 de julho.

[27] GS, 200.

[28] Idem, 205.

[29] Cf LS, n.101

[30] Cf. LS, n. 216.

[31] Cf. DGAE, n. 113.

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