Servir radicalmente ao Reino para ser plenamente Cristão

 

SERVIR RADICALMENTE AO REINO, PARA SER PLENAMENTE CRISTÃO.

            O cristianismo, sobretudo nesta nostra “América cristã”, mas que talvez ultrapasse suas fronteiras vive uma contradição que exigirá, primeiro o seu reconhecimento, admitir que ela exista para em seguida enfrentá-la e quem sabe, com muita ousadia profética, superá-la. Temos hoje no Papa Francisco importante aliado para retomar a profecia na Igreja. Vivido oficialmente dentro e a partir das Religiões que se dizem cristãs, às vezes apenas das Igrejas, quando não dos templos somente, o cristianismo é frequentemente reduzido a um Eclesiologismo que na prática prescinde do Reino. Isto faz com que seja naturalizada uma prática perigosa para o reino e conveniente para as “autoridades” eclesiásticas que a legitimam, que é convencionar na doutrina, na catequese e nas homilias e sermões, que servir a Igreja é sempre a mesma coisa que servir ao Reino. Ou ainda mais perigoso, que a Igreja e o Reino se equivalem. Isto é um sacrilégio, mas justifica uma série de autoritarismos, abusos e, sobretudo o triunfalismo reinante que precisa desta mentira para parecer do bem. Sem contar que, sem estas armas de alienação em massa, o clericalismo, “suprema glória” da Igreja Poder, não se sustentaria.

            Na mesma linha e com os mesmos males causados à inteligência e à fé, lê-se no medo das lideranças, sobretudo as que exercem coordenações, que desobedecer ao Padre-Pastor,  ou ao Bispo é desobedecer a Deus. Que não pedir autorização ao Padre para fazer o bem aos pobres e necessitados, o que na prática significa viver o Batismo, é esconder dele o que se faz e que isto é até pecado. Aliás, precisaríamos rever o conceito de pecado e seria até bom que o Papa Francisco nos mostrasse um sinal neste sentido. Quem sabe uma encíclica. “O pecado da omissão e do desamor”. A obediência cega, incondicional e servil é anticristã. Somos, afinal, seguidores/as de um desobediente civil.  Obedecer demais também é pecado, principalmente quando esta obediência nos faz robores, quando não marionetes, ou pessoas com um grau de deficiência que nos deixa incapazes de transgredir normas rubricistas. Leis e normas inventadas por qualquer candidato a Herodes que servem às conveniências e presta desserviço ao Reino. Jesus é o maior de todos os exemplos destas desobediências e transgressões. E a grande maioria delas era exatamente relacionada às “autoridades” religiosas de seu tempo. Um/a cristão/ã medroso/a deve pensar ou dizer ao ler este texto, “deu no que deu”, e eu lhes respondo, exatamente, deu no que deu. Sem aquelas transgressões, sem enfrentar a demência das estruturas de poder, sem denunciar suas conveniências, sem transgredir as leis que matam o corpo e descaracterizam a alma, não haveria a ressurreição. Sem correr os riscos que a liberdade exige e sem enfrentar quem oprime, não se liberta quem é oprimido.

 É impressionante observar o abismo, que se agiganta a cada dia, entre esta formalidade espalhafatosa, a que se reduziu a presença do clero, e a vivência da fé, daqueles/as que são cada vez mais confortavelmente chamados simplesmente de leigos. É uma das expressões da Teologia Oficial que mais fala próximo ao Jesus dos Evangelhos. Jesus não foi Padre, nem Bispo, foi Pastor, mas foi, como continua sendo, o Bom Pastor misericordioso, retratado sem foto shop, mas tão humano e tão Deus em Ezequiel 34; Jo 10 e no Sl 22/23. E tem gente que acha ruim ser chamada de leigo. Este é o contraste com os “pastores” tradicionais, que agem como reis, vivem em palácios e desconhecem a misericórdia. Trocaram a fé e suas exigências, sobretudo a sua companheira inseparável, a esperança, pela tradição, pelo liturgismo, quando não por um moralismo anacrônico e sem fundamentos.

É de se perguntar: e o Batismo? Este não deveria ser o referencial, a honra e o fardo do cristão e da cristã? Dele deveriam decorrer os compromissos e as responsabilidades cristãs, não da subserviência, muitas vezes vividas tendo Abrão, Maria, e até Jesus como exemplos. Obediente a quem? Obedecer ao que? O que é ser obediente? Este é o pecado que Tomás de Aquino abominava.  O pecado da ignorância, da alienação, do qual nascem o autoritarismo, a simonia, a pedofilia e o intimismo da fé, onde eu e meu Deus, sob as diretrizes de meu pastor, chame-se como queira, salvamos e condenamos, conforme nos convenha. São males em moda em nosso tempo. Até porque o Batismo não faz distinção nem de cor, nem de raça, nem de sexo, de classe social ou nível de instrução. Aliás, não é difícil encontrar nos compromissos que decorrem dele alguma preferência, mas é a favor daqueles/as hoje, na prática, deserdados da compaixão e da mística cristãs.

            Se Jesus pudesse participar de uma equipe ou pastoral da Igreja, por exemplo, e Ele fosse ajudar na celebração, imagino que Ele preferiria ir para a equipe de liturgia, mas se recusaria a resumir este Serviço a escolher quem faz tal leitura e quem apresenta as preces. A perguntar se pode olhar para o Padre ou não; se é correto inclinar o corpo quarenta e cinco graus na genuflexão, ou se tem que se ajoelhar, ou beijar o chão; se pode atravessar em frente ao altar durante a celebração, e tantos outros modismos que se criam para não servir ao reino. Ele passaria muita saliva nos olhos de muita gente, chutaria o “pau da barraca” quando o Padre proibisse os fiéis de se reunirem na Igreja para rezar e preparar as atividades pastorais, a exemplo do que fez no templo. E surpreenderia a todos, ao mostrar a presença de Deus na sua Palavra, como o fez ao ler o texto de Isaías, aos doze anos e, hoje, dormiria na casa de um casal homo afetivo, escandalizando todo o clero. Ainda, com sua misericórdia infinita, implantaria muitas orelhas em forma de dignidades de catequistas, ministros da Eucaristia e da Palavra, assim como de assessores e coordenadores/as de pastorais e grupos de oração, excessivamente obedientes, que as tiveram amputadas pelas “autoridades” moralistas que resumem a liturgia e toda a vida da Igreja à lei do pode e não pode. Para estes “doutores da lei” quem não concorda, tá fora! É impuro e está em pecado. O que eles não veem, não existe. Santo pecado que liberta mais um/a para ser profeta/profetiza no meio do povo. Os “profetas” do templo costumam defender privilégios, no máximo, justificar práticas, os profetas e profetizas, de ontem como de hoje, que servem ao Reino costumam lutar por mudanças. Serem no que fazem, exemplos destas mudanças. Por isto costumam não serem bem vistos pelas “autoridades” eclesiásticas.

            Fico imaginando Jesus conversando com os Bispos que maltratam os jovens que os procuram pedindo atenção e compaixão com suas causas e seus clamores. O extermínio de jovens, cujas coordenadas geográficas, são invisíveis às politicas públicas, sobretudo de educação, e as ações de Evangelização, mas são visíveis e fáceis às balas perdidas. Tentam calar a todo custo à voz dos profetas, e ainda se assustam quando as pedras começam a falar e até a escrever, para usar um texto de Lucas, (Lc 19,40) e a letra de um canto das Comunidades Eclesiais de Base, hoje um ponto cego para a prática da Igreja, mas que abrilhantam seus principais Documentos da introdução à bibliografia. Perdem ainda a capacidade de ouvir e ignoram e até se irritam, quando uma jumenta fala, (Nm 22, 28-30), uma hora vai chegar, e não deve tardar, oráculo do Senhor, que tal aquela jumenta, este povo vai falar. Vai perguntar também, que mal nós te fizemos, para que nos maltrates deste jeito, nos excluindo da participação e das decisões?  A espada vai conjugar o verbo amar e este voltará a ser critério de salvação. Uma Pedra ou quem sabe uma Jumenta, evangelizará e converterá toda a Igreja, dizendo, “você não pode amaldiçoar este povo abençoado”. O povo, qual jumenta cuja boca o Senhor há de abrir, dirá à Igreja, eu vim aqui para impedi-la de seguir um caminho que desagrada ao Senhor! Neste dia voltaremos a Puebla e atenderemos, ao seu pedido e ao seu clamor de conversão da Igreja. Quando as Pedras ou as Jumentas vão pedir algumas migalhas que caem das mesas dos Bispos, mas que seriam suficientes para saciar as suas necessidades e dar vida às suas entidades e ouvem: “O que eu posso fazer é aquilo que tem que ser feito, e vocês não tem coragem de fazer, fechar esta casa que só dar despesas, por exemplo”. Talvez esteja faltando abrir os olhos, talvez eles não estejam vendo o que ver a Jumenta. O Reino em perigo.

            O que é possível sentir entre o casco da Jumenta e o muro de indiferença são Pedras escorregando, despencando do altar, fugindo de sua frieza que queima. Cada vez mais, quem quer servir ao Reino, busca outros caminhos que não os corredores e salas, cada vez mais espaçosas, onde o silêncio reinante não é o silêncio orante ou o profético, mas a solidão da velhice que enruga a esperança. O caminho do Reino pode ainda passar ao lado da Igreja, margeando-a, e se estreitarem ainda mais estas margens que já são estreitas demais, ele pode passar cada vez mais distante até destas margens. Quando a Igreja não reconhece ou deixa de enxergar as Comunidades e questiona até a sua existência, não deveria ser surpresa para ninguém que as trombetas dos Anjos tocam para outro lado e noutro tom. Quando se exige tanta formalidade, que mais parece critério de exclusão, quando se julga o serviço e a santidade pelo nível de sacrifício, se está contrariando a pedagogia do Reino que preza a misericórdia e não o sacrifício (Mt 9,13).

            Imagino, olhando como a Igreja insiste em des-tratar as mulheres, dando-lhes uma atenção de subespécie, é bulling eclesiástico o que acontece.  Se São José chegasse procurando um lugarzinho aconchegante e seguro para sua Maria dar à luz a Jesus, hoje. Dificilmente conseguiria fazê-lo numa Paróquia. Primeiro, porque, grávida talvez de um homem um pouco mais velho, sem ser casada, sem constituir família, como na prática é vista pela Igreja; segundo, até o coordenador, ou a liderança piedosa e obediente, conseguir ouvir o Padre dizer que ela não pode entrar na Igreja porque não é funcionária, e finalmente negar-lhe o pedido, ela já teria dado à luz. Talvez numa destas igrejinhas pentecostais que ficam abertas quase que 24 horas por dia; numa pequena comunidade onde o coordenador tenha a chave, more ao lado e cuide, onde as pessoas se conhecem pelo nome; numa casa de umbanda; num terreiro de candomblé; ou na casa de um destes catadores de material reciclável, ao lado do cavalo e do cachorro, sobre os papelões e sob o olhar amoroso de sua família. Parafraseando (SMITH, 2006) vivemos um momento de “amnésia profética” na Igreja. Se nossos Bispos tivessem um problema técnico no seu GPS e caíssem, por infortúnio, numa destas Galiléias de nossas cidades, e lá se encontrassem com Jesus, ele certamente lhes perguntaria: meus irmãos, como estão as Comunidades Eclesiais de Base em suas Dioceses? Grande parte deles responderia: Senhor, não lhe enviaram ainda o último relatório de nossa última reunião? O Senhor não acessou o seu E-MAIL nem o sitio de nossa Diocese ou da CNBB nos últimos dias? Ou será que o Senhor não tem ainda face book? As Comunidades Eclesiais de Base não existem mais!

               Tenho me perguntado e tentado ouvir as vozes do vento, tenho rezado para que o Papa Francisco consiga refazer a Igreja como escola de educação na fé, como diz o Documento de Aparecida. Este é um clamor que vem sendo abafado há cinquenta anos, desde o Concílio Vaticano II. Foi um grito de amor em Medellín, na II Conferência, tornou-se um apelo em Puebla na III Conferência, com a opção preferencial pelos pobres, mas pouco a pouco, os ouvidos ficaram moucos. A reorganização das Paróquias, por exemplo, em Comunidades de Comunidades, exige mais que administradores técnicos de questões financeiras e materiais. Exige Pastores com formação humanista, capaz de administrar com amor os conflitos. Que sejam muitas vezes mais um na construção do Reino, mas saiba ser ovelha do Reino com as outras e Pastor para elas quando quebram uma pata, quando o lobo as ameaça e que saiba amar. A metodologia e os processos formativos destes “pastores”, a avaliar pelos resultados, parecem apontar para outro lado.

               A Igreja tem como urgência, eu imagino, rever, inclusive, o conceito de relação. Resgatar a relação de irmãos, mais que ser filhos do mesmo Pai. Somos irmãos e irmãs. Ser filho de Deus é um desejo comum, porém, desta filiação, decorre uma irmandade. E isto não se constrói nas multidões, nem nas missas shows, mas nas Comunidades. É a relação Eu-Tu, que Buber sugere e Freire retrata com precisão e genialidade. Conseguirá o Papa Francisco reverter esta situação, transformando administradores em Pastores? Doutrinadores em Aprendentes? Que o Espírito Santo de Deus o ilumine e ilumine a Igreja nestes tempos de urgências e exigências, lembrando o Padre Marcelo Barros. A Igreja precisa retomar as Fontes! Revisitar os ensinamentos da Igreja primitiva, seguir a Jesus é a sua missão. Ela deve ser sinal do Reino e não substituí-lo. É preciso ter a coragem profética de andar “fora da moda”, ser Igreja no mundo, mas dando-lhe sabor, não provando os seus paladares. Imagino o vento que sopra às orelhas atentas do Papa Francisco lhe dizendo: reconstrói aminha Igreja, Francisco! Ele deve está se perguntando em seus momentos de meditação, como se dará isto se não conheço as forças da magia? E eu, como uma pedra que ousa falar, fico pensando no Padre Zezinho, Se ouvires a voz do vento, Chamando sem cessar. Se ouvires a voz do tempo, Mandando esperar. A decisão é tua! A decisão é tua!” A hora é esta, Francisco. A decisão de Servir e de a quem servir, consciente o inconscientemente, é sempre da gente, é sempre minha, é sempre tua. E isto, a priori, vale para toda a Igreja, inclusive para o Papa. É preciso, e este é o grande motivador deste texto, colocar em prática, o conceito de Igreja, como sendo o Povo de Deus, que, sobretudo, o Concílio Vaticano II cravou na Lúmen Gentium. Este Povo de Deus na terra, não é para obedecer cegamente, dizer amém a tudo, mas para transformar este mundo, como quer a Gaudium Et Spes.  

Curitiba, 17 de Junho de 2013.

Homenagem:

Hoje meu pai, Noé Ferreira Santiago, faria cem anos na terra. Tem a graça, como homem amoroso, que prezava e praticava a justiça, abominando a injustiça e a ganância, de comemorar o seu centenário junto com os já escolhidos para formar a Igreja de Deus no céu. Papai, o senhor sabe do que fala este texto. Serviu radicalmente ao Reino e foi plenamente cristão. Soube viver os critérios de salvação, (Mt 25, 31- 46), amou e se deixou amar. Continua um exemplo de fé para quem lhe conheceu e para quem ouve falar sobre a sua vida, mesmo 22 anos depois de ser chamado pelo Pai para ocupar o lugar reservado aos justos.

Joao Santiago.

É Batizado.

Teólogo – Poeta e Militante.

Mestre em Teologia.

 

 

 

Para aprofundar este assunto consultar a seguinte bibliografia:

- ALES BELLO, A. Culturas e Religiões: uma leitura fenomenológica. Bauru-SP: Edusc, 1998.

- BÍBLIA Sagrada – Tradução Ecumênica da Bíblia- TEB. São Paulo: Loyola, 1994.

- BUBER, Martin. Eu e Tu. (tradução, Von Zuben) São Paulo: Centauro, 2012.

- CELAM: Conselho Episcopal Latino-Americano. Conclusões de Medellín. São Paulo. Edições Paulinas, 2ª edição, 1975.

- CELAM: Conselho Episcopal Latino-Americano. Conclusões da Conferência de PUEBLA. São Paulo. Edições Paulinas, 13ª Edição, 2004.

- CELAM: Conselho Episcopal Latino-Americano. Documento de Aparecida. São Paulo. Edições Paulinas, 7ª Edição, 2008.

- FRANKL. Viktor Emil. A presença ignorada de Deus. Petrópolis- RJ: Vozes/Sinodal, 2007. 

- FRANKL, E. Viktor. Em busca de sentido. 25ª ed. Vozes, 1991.

- FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Terra, 44ª ed. 2006.

- FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. São Paulo: Terra, 16ª ed.2009.

- LÉVINAS, E. De Deus que vem à ideia. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002. 

- MOLTMANN Jürgen. Teologia da Esperança. Edições Loyola 3ª edição, 2005. 

- PIXLEY, Jorge. A História de Israel a partir dos pobres. Petrópolis-RJ: Vozes, 9ª ed. 2003.

- SMITH, Mark S. O memorial de Deus: História, memória e a experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

- SUNG, Jung Mo. Teologia e Economia. São Paulo: Fonte editorial, 2008.

- VATICANO II: GAUDIUM ET SPES. Constituição pastoral do Concílio Vaticano II sobre a igreja no mundo de hoje. São Paulo: Paulinas, 7ª edição, 1976.

- VATICANO II: LÚMEN GENTIUM. Constituição Dogmática do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre a Igreja. São Paulo: Paulinas, 13ª edição, 1999.