Caem as estátuas, reinam as máscaras, naturalizam-se as diversas formas de conveniências e crescem a miséria e a violência, enquanto um vírus e um parasita seguem matando pessoas indefesas em nosso país. Os últimos acontecimentos históricos em nosso país, sobretudo, as últimas eleições, nos convidam a fazermos uma pergunta fundamental. E quando a voz do povo não é a voz de Deus? Quando o povo se afasta de Deus, abandona seus ensinamentos (Sl 73,27; Ml 3,13-15; Jt 5,20-21), ignora a sua justiça e segue falsos messias, falsos profetas e se apega a falsos salvadores da pátria, vira ovelhas sem pastor. Cai nas mãos de milícias, de salteadores e predadores e é levado para o exílio e sofre. O ódio que se expressa em forma de violência tem um que de diabólico, porque nos divide e atinge a identidade do ser. Contra a mulher, por ela ser mulher; contra os homossexuais é por eles serem homossexuais; contra os negros é por eles serem negros. E assim é também com a População em Situação de Rua; com os indígenas; com a esquerda; contra quem pensa diferente; e por fim, contra quem pensa, simplesmente. Na lógica profética, que é a antilógica do mundo, não basta não matar, é preciso denunciar quem mata e quem manda matar.
É hora de defender as identidades e os princípios. Os grupos e os segmentos perseguidos e ameaçados pelo ativismo miliciano e com métodos fascistas, que não têm uma identidade (ou negam tê-la), não têm um rosto, uma cara, um objetivo decifrável e definido (ou os escondem), e perseguem exatamente quem os tem. E porque os têm. A marca dos movimentos proféticos e libertários, assim como dos profetas e das profetizas, na perspectiva da reflexão aqui proposta, nos diz que, a identidade da base é a resistência e a luta. A base da fé cristã é a vida em abundância (Jo 10,10) e o Reino e a Justiça em primeiro lugar (Mt 6,33). A base da Doutrina Social da Igreja é a subsidiariedade, entendida como a defesa e a prática da solidariedade universal e a garantia da dignidade humana e do bem comum. A base dos Movimentos Sociais e Populares é a luta para garantir o Estado de Direito: a democracia, os Direitos Humanos, e Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes, Educação, Saúde e Assistência Social. A base da esquerda está centrada nestes campos.
O movimento miliciano-fascista que dá sustentação ao atual governo, busca exatamente comprometer essa base. Seus métodos são o escárnio, o deboche, o negacionismo, as fake News (notícias falsas) e a violência física. A pergunta que se-nos-impõe é: quais são as resistências e quais são as lutas existentes para onde nós podemos dirigir as nossas forças? Em nome da família, eles destroem a família; em nome da democracia, eles destroem todas as bases democráticas; em nome da liberdade, eles vulgarizam a liberdade, condição definidora de humanidade, tratando-a como algo concedido, permito e até mesmo secundário. É, por fim, em nome dos direitos que eles negam e retiram os Direitos Humanos Básicos, aparentemente consolidados, pelo até o golpe de 2014. A ideologia negacionista, ainda pouco interpretada e entendida por nós, nega as leis naturais; nega o sofrimento; nega a morte; e nega a própria vida, como um dom de Deus, mas o fazem em nome de Deus. Ainda não temos um contra-argumento, uma contra linguagem que se oponham a metalinguagem do fascismo miliciano que nos acuou em nosso silêncio às vezes ruidoso, outras vezes surdo.
Uma pergunta é preciso ser feita e uma resposta é urgente que lhe seja dada. Qual é a identidade da Igreja? A resposta dada a essa pergunta nos ajudará a reconhecer quando a Igreja estiver se distanciando de sua missão e de sua vocação. Quando ela cair no submundo das ideologias das barganhas e dos poderes do mundo. É preciso polinizar a Palavra com o sêmen da Profecia, da mesma forma que é preciso polinizar a Profecia com o sêmen da Palavra. É a Profecia quem faz a Palavra e a ação aproximarem-se ao ponto de equivalerem-se. A Palavra que cria (Gn 1), A Palavra que dá a vida e salva (Jo 5,24). A Palavra que é Amor, o Verbo que se fez carne e armou sua barraca em nós (Jo 1, 14). Amar permanece sendo o primeiro e maior dos mandamentos.
Tem uma frase interessante no filme que retrata uma realidade passada da Igreja mundana e que alguns de seus lobistas de hoje insistem em não querer ver. “A vida seria tranquila, sem amar, Adso... segura, sossegada e monótona.” (O nome da Rosa). É a Igreja adoecida pelo desejo do poder e do sucesso, fartamente representada pela mídia de rádios e televisões católicas. Ao contrário da Profecia a mídia fabrica ídolos de cera e tenta fazê-los equivalentes a um Profeta. Até confunde e engana muita gente e por certo tempo, mas não cola. Assim como as estátuas de ditadores, torturadores e racistas estão caindo pelo mundo à fora, as máscaras dos ídolos também caem e não demora. Até porque, são ídolos de cera, não resistem ao calor da profecia e da verdade. Têm parte de seus pés de barro (ver Dn 2), areia de praia, talvez. Faltam-nos ainda, no entanto, a convicção, a coragem e a decisão de falar e agir profeticamente. Interpretar e ajudar nosso povo a também interpretar, não o sonho, mas o pesadelo que nos abate e ameaça destruir nossos sonhos.
Um desafio e um aprendizado batem à porta dos cristãos e das cristãs. Nós precisamos encontrar a linguagem, a coragem e a forma de dizer que não só existimos, mas que resistimos e que não estamos inertes. Mostrar as nossas caras e fazer ouvir os nossos gritos. Dizer que os gritos da terra queimada e ferida, dos indígenas assassinados, das mulheres violentadas, dos jovens negros exterminados, dos homossexuais tornados impuros e demonizados, inclusive por setores fundamentalistas da Igreja Católica, são os nossos gritos. Os gritos das famílias que perdem filhos (crianças, adolescentes e jovens) pelas balas nada perdidas de uma polícia doutrinada exatamente para mata-los, por um Estado homicida, também são os nossos gritos. Precisamos aprender a dizer, agora, que os gemidos e os gritos de milhões de famílias que passam fome, terror e morrem à míngua, pela inexistência de políticas públicas, também e igualmente são os nossos gemidos e os nossos gritos. Sob pena de sermos cúmplices e coautores destes crimes.
A Identidade da Igreja é cristã e não combina com um governo, tampouco com um Estado que naturaliza a corrupção; banaliza a morte premeditada e encomendada; dá preferência ao mercado e à economia diante da saúde e da vida humana. E faz questão de mostrar que também no clero, têm aqueles que barganham, assim como nas igrejas-comodities, que se transformaram em casas de câmbio e são vendidas por seus pastores nas bancas e gabinetes. Não é possível taparmos os nossos narizes e fingir que não sentimos o mau cheiro da simonia pós-moderna. Com a Igreja ou sem a Igreja, enquanto instituição, porque, nesta perspectiva, nós somos a Igreja. Ou não seremos cristãos e cristãs. Ou não teremos rosto, identidade. A CNBB é Igreja, de uma forma como muitas vezes as paróquias e dioceses não o são e paga o preço; as televisões, mesmo as católicas, por vezes também não o são. Enquanto os grupos fundamentalistas que vendem as gotas de sangue dos crucificados e das crucificadas, inclusive o sangue de Jesus, em troca de dinheiro, para falar bem de quem pratica o mal, nós precisamos dizer que o nosso grito é de indignação. É inadmissível que, exatamente por causa do sofrimento de milhões de famílias e diante de um governo perverso e cercado de denúncias de crimes, alguém barganhe, em nome da Igreja, para abocanhar os recursos covardemente desviados do Programa Bolsa Família. É cruel, é nojento e covarde.
Eu leio e ouço a todo momento dizer-se que seremos melhores depois da pandemia, que sairemos melhores do outro lado deste deserto, mas não vejo nada que confirme esta hipótese. Não vejo nenhum sinal importante que me diga sobre uma mudança efetiva de mentalidade e de comportamento do ser humano agora e que aponte para o pós-corona vírus. O ser o humano não muda por espontaneidade. É preciso educá-lo para a mudança. E as escolas que são capazes de educar o ser humano, a saber: a família, as Igrejas/Religiões e a Escola/Educação formal, esta como um serviço público, estão deitadas em berço esplêndido. O que fazem as rádios e televisões católicas, além dos ritualismos, para informar e educar o povo para a realidade?
Três desafios se apresentam para a Igreja Católica: a) pensar uma nova espiritualidade, menos refém do clero e menos clericalista, portanto; b) ensinar aos fiéis católicos a Justiça Social contida na sua Doutrina Social e que ela brota do Evangelho; c) educar o clero para conviver com a pluralidade religiosa, política e social, sobretudo, étnica e de gênero. Um aprendizado importante para as famílias: ensinar para as crianças, adolescentes e jovens, que lavar a louça, além de um dever familiar, cristão e cidadão, previne contra doenças, inclusive contra o corona vírus. Você termina de lavar a louça e sai com as mãos higienizadas. Principalmente os homens precisam aprender. E aqui existe uma questão metodológica. O pai não pode apenas mandar os filhos, é preciso ensinar fazendo. Na pedagogia popular isso se chama coerência, e na pedagogia cristã, isso se chama testemunho.
Na dimensão da política partidária, a ausência ou a inexistência de uma oposição consequente e eficiente (fazer bem) e eficaz (fazer certo); que preencha esse vazio de liderança (alguém que realmente se preocupe e se arrisque pelos outros); enfrentar a ignorância ou o esquecimento do ethos constitucional democrático, na perspectiva política e aqui sim, o mais absoluto desprezo do ethos cristão. Quando o Estado não assume o seu papel, sobretudo no mundo do trabalho, prevalece a famosa lei do mercado. E você sabe qual é a lei do mercado? É a lei do mais forte. Forte aqui é sinônimo de violento. A economia assim, exclui, segrega e mata, porque as pessoas são colocadas abaixo e a serviço das coisas e do lucro. Em que medida essa pandemia, juntamente com o descaso do governo com relação às políticas sociais, educacionais e culturais e o deboche de um presidente sarcástico, frio e calculista e debochado, nos farão ver a necessidade da consciência política para o povo cristão? As Televisões e Rádios católicas, uma vez convertidas, se tornarão escolas de Formação Cristã, Humana e a serviço do bem comum. Quando a Igreja vai entender o alcance e a importância da Educação à Distância?
Curitiba, 12 de junho de 2020 – Aniversário de um aninho de minha netinha Helena.
João Ferreira Santiago - É Teólogo Poeta e Militante.
É Professor de Teologia na Faculdade UNINA.
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