Entre os sinais de Jonas e as atitudes de Pedro encontramos muitos desertos, tempestades e atentados, mas movimentam-se em ondas jamais calmas e quase sempre em águas revoltas e por vezes turvas, as Poesias Sociais de Paulo. Judite e Ester fizeram-se poesia e nos ensinaram a rimar Ousadia com Parusia. Dignidade com liberdade. Revolução com Libertação. O Batista fez escorrer em versos metricamente perfeitos e jamais desfeitos as contradições de uma religião que já não liga, que não religa à nada, tampouco é capaz de reler, revisitar, nem reinterpretar, pois o que vale é repetir. Mas o Batista também expôs as vísceras de uma elite promíscua e que prostituía a religião para tornar legítimos os seus interesses escusos. Ignorar a violência dos tiranos é ignorar a justiça como porta de entrada da paz de Deus. Precisamos pensar nessas coisas hoje.
O Nazareno, o poeta maior, fez poema nas Montanhas, nos caminhos, nas casas e nos becos e fez do grito uma poesia dos que são perseguidos. Porém, nenhuma rima jamais foi tão milimetricamente perfeita como os acordes do barulho de seus silêncios. O anonimato de seu nascimento, o enredo de seu batismo e os versos narrados por sua cruz, são quadras de um poema que não basta ser lido. Cada um e cada uma de nós precisa vivê-lo. Poesia e poetisa se confundem e se revelam na irreverência de Maria de Magdala. Não, quero ter a pretensão de falar tudo, mas não posso calar-me falando nada. Em Maria de Magdala a poesia é testemunho martirial, como o batismo é ingresso ao título de mártir. Aonde uns veem fé, religião, milagre, revelação e ressureição, o profeta ver poesia. Somente assim, poderemos dizer: dói, mas eu canto. Você não poderá encontrar algo que se diga que é humano ou é divino, sem que antes encontre a poesia que existe, que resiste e que insiste em fazê-lo existir.
Em cada evento ou acontecimento ou movimento, é a poesia que acontece, é a poesia que move e faz mover. Afinal, como fazer teologia sem poesia? Como narrar a Criação, o êxodo, a história e a profecia, a luta e a libertação, sem o poder de comunicar e de encantar da poesia? Sem ela a esperança desbota, o encanto se esgota e a tristeza governa. O que é louvar se não deixar-se possuir pela inspiração de um metaverso que em poesia transcende? Os Sábios e as Sábias, assim como os Deuses e as Deusas, antes são poetas e poetisas. Quando não os entendemos direito, ou não os aceitamos em sua plenitude, disfarçamos chamando-os de santos e santas. Mas o que é o Pastor se não um Poeta a semear com palavras as pegadas que encontrou, que viu e que ele mesmo fez nos caminhos por onde andou? O que é um teólogo e uma teóloga se não um poeta e uma poetisa que que buscam organizar as palavras como os pingos da chuva são organizados? Se não semeia não é um Pastor, não é poeta, é apenas um narrador de fatos vistos de longe. Todavia, a poesia se faz no caminho e caminhando. Sem caminho e caminhante não tem poesia, porque falta-nos o ritmo, o passo, o calor, a poeira, a esperança da vida, na boniteza do movimento. Sem o caminho a poesia é prosa, resumida à glosa e a Pastoral é ativismo que se dá confinado e inerte.
A pandemia, por exemplo, que nada tem a ver com poesia - pois com ela não é a morte que vem na hora certa, mas é a vida que se vai antes da hora - não veio para mudar a nossa forma de agir ou para nos converter em pessoas melhores. Antes, a pandemia veio para revelar o que nós somos. O que nós nos tornamos como seres capazes de inteligência e de amar, ao mesmo tempo. Juntos a inteligência e o amor são poesia. A inteligência desprovida de amor é uma arma de extinção em massa, equivalente em crueldade a um pau-de-arara, onde se torturam pessoas inocentes ou não. O que realmente nos tornamos até aqui e até que ponto sabemos o que é essencial à vida e na vida? A vida é poesia e como parte nem sempre reconhecida da vida, a morte, ou o morrer, também é poesia. Já o matar e o deixar que morra, fazem parte de outro gênero. A questão è: como se vive? Como se morre? Nos caminhos por onde andei, nas poesias que fiz e que ajudei a fazer, duas dimensões se destacam e rimam em versos que muitos não quiseram ouvir.
A minha grande família sanguínea e a minha enorme família extensa, afetiva e do caminho, me ensinaram que são estes os versos compostos com as tintas da pandemia: a gente descobriu quem sabe chorar e é capaz de chorar quando chora com a dor do outro. Estes fizeram poesia e caminharam para seus interiores, encontrando-se e reencontrando-se com seus próprios versos; a gente descobriu também que “eu” só tem sentido no interior de Deus, porque a poesia está mesmo é no nós. De modo que, a pandemia nos fez lembrar que nenhum de nós está seguro se um de nós estiver em risco. Aqui, cura e salvação, a exemplo do que nos diz a Literatura Sapiencial, têm a mesma significação: ou nos cuidamos todos e todas ou estaremos em risco igualmente. Neste sentido, retomando o raciocínio anterior, sabemos até que ponto deixamos que se desenvolvesse em nós a fraternidade. Em tempo, porque ainda somos poucos os que descobrimos que a vacina é eficaz sim, mas só contra o corona vírus. Contra a cegueira moral, a falta de caráter e a imbecilidade a vacina não funciona. Depois da brilhante contribuição das ciências e dos/das cientistas, já não é mais o corona vírus quem mata. Agora quem mata é uma pandemia formada por uma legião de demônios. Entre eles: a indiferença, a insensatez, o negacionismo e as patologias citadas logo acima.
Nas pessoas, nas famílias e nas comunidades humanamente desenvolvidas, na perspectiva de Paulo VI, “Desenvolver todos os seres humanos e os seres humanos todos”, o que mais fez mal foi a falta do cuidado através da visita, impossibilitada pela exigência do isolamento. Nas minhas famílias, quem ficou internado, sofreu pelo fato de não ter a companhia dos familiares e amigos e por não saber notícias deles. Quem ficou em casa, sofreu igualmente por não poder fazer companhia ao seu familiar ou ao seu amigo e por não ter notícias mais que uma vez por dia. Vejamos: Pedro, em tese, não se tornou o líder do grupo de militantes itinerantes após o assassinato do Nazareno, pelo que poderia fazer no futuro, mas pelo que ele fez no passado e fazia naquele momento. Também não foi por seus acertos, embora eles sejam abundantes, mas por sua capacidade de reconhecer seus erros e sempre que caiu, por sua capacidade de se levantar e sempre continuar caminhando. Pedro sabia ouvir e, embora tivesse o sangue quente, tinha um coração bom. O fato é, que a exemplo de Jesus com seus companheiros, hoje nós devemos saber com quem realmente nós podemos contar e em quem nós devemos confiar. Isso vale para âmbito familiar, religioso, jurídico, legislativo e governamental.
Para o Poeta, que também faz outras coisas, Frei Carlos Mesters conversão é Conversa Grande, é poesia, portanto. Mesters, que celebra 90 anos de vida e poesia neste dia 20 de outubro de 2021, sabe que só Deus é bom, mas nós somos filhos e filhas de Deus e somos chamados e chamadas a sermos bons/boas também. Parabéns, Poeta da Palavra que da Palavra do Poeta fez a sua poesia caminhada, caminhante, andada e andante, empoeirada de pó das íngremes estradas do povo e melada de um suor que só o caminho faz pingar. Não pinga em academias, não pinga nos templos e tampouco nas mesas solenes e nas teses tantas vezes tão inteligentes, mas por vezes tão carentes de amor, de poesia e de liberdade. Refém da rigidez conceitual. Este suor, feito de água-viva e que faz transbordar a taça dos/das mártires, escorre da Fonte da Misericórdia, da Compaixão e da simplicidade, mas não é visto nos deprimentes e apelativos cercos e circos, sejam em ou de Jericó, ou em qualquer outro lugar. O meu terço é o terço dos que não têm conta. O meu alimento é a amizade, que também é a minha primeira vacina contra a pandemia da indiferença, da intolerância e do preconceito. A minha dor não é minha senão por adoção. Sinto, acolho e grito a dor dos meus irmãos e das minhas irmãs que se divorciam dos seus casamentos e viram indigentes na igreja que não sabe o que é poesia; caminho com os/as que assumem a sua sexualidade como Deus lhes deu e se tornam impuros nos templos e por vezes para os/as outros/as que até se dizem irmãos e irmãs seus, mas lhes viram as costas. Quando não, lhes atiram pedras.
Como falar de Poesia diante de um filho que faz apologia à hóstia nas redes sociais, mas deixou que a própria mãe morresse com covid-19, impedindo-a o convencendo-a a não tomar vacina, em nome de seu negacionismo estúpido, desinteligente e desamoroso? E porque não, delinquente? Será que ele em algum momento, sentirá remorso? Do enorme crucifixo que ele carrega e ostenta no peito, não brota poesia, mas escorre o sangue do escárnio, como se olhasse para o crucificado e lhe dissesse: bem feito! Todos nós vamos morrer um dia mesmo! Você mereceu isso. Eu teria gritado também: crucifica-o! crucifica-o! quem mandou se meter Cesar? O meu mito! Por fim, muitos estão na Igreja, mas jamais serão Igreja.
Muitos são os que dizem, Senhor, Senhor, mas caluniam os irmãos e as irmãs, os desviam dos caminhos da vacina e da ciência, que por sua vez, é um dom de Deus, e os/as julgam como se fossem os donos da verdade. Porém, a lâmpada ainda está acesa e o azeite ainda se multiplica, na poesia de Dom Orlando Brandes; de Dom José Antonio Peruzzo; de Dom Naudal Alves Gomes; da Reverenda Magda Guedes, agora Bispa da Igreja Anglicana de Curitiba; na poesia da pastora luterana Romi Bencke; e de tantos e tantas “Cristãos e Cristãs anônimas”, para usar uma expressão do teólogo Karl Rahner, que fazem poesia pelos caminhos por onde caminham. “Diante da vida, do povo sofrido, a gente não fala; só sabe calar. Esquece as ideias do povo sabido, e fica humilde; começa a pensar.” (Frei Carlos Mesters, 22 de janeiro de 1971). Vamos pensar na poesia que nosso caminho escreveu? A juventude que tantas vezes é tida na igreja como remendo novo em roupa velha, precisa ser melhor entendida, porque é na juventude que a poesia se expressa e se revela como Palavra Criadora, ousada, revolucionária e libertadora. Sem a juventude, ou com ela domesticada pela falsa piedade que tenta fazê-la vaquinha de presépio, com o pescocinho docilmente inclinado e virando os olhinhos, repousando no espírito sem sopro, a Igreja é caduca, o mundo apenas um habitat e a vida apenas um arremedo. Assim, não pode haver poesia. E sem poesia não há caminho.
Curitiba, 19 de outubro de 2021.
João Ferreira Santiago
É Teólogo, Poeta e Militante.
É Coordenador do Curso de Teologia da Faculdade Unina.
Autor do Livro: Teologia Pastoral – Arte do Discipulado e do Seguimento de Leigos e Leigas – à venda com o autor.
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